O Parecer em questão trata de consulta encaminhada pelo Presidente do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ao Ministério da Previdência Social, na qual se questiona a respeito da possibilidade ou vedação de enquadramento, como segurado especial da Previdência Social, de trabalhador rural que ocupa terrenos marginais de rodovias.
Constata-se dos autos que a respeito do tema está havendo divergência de entendimento jurídico entre a diretoria de benefícios do INSS e a Procuradoria Federal oficiante junto àquela Autarquia, conforme se confere a seguir.
Mediante solicitação da Gerência Executiva do INSS em Teófilo Otoni, a Procuradoria Federal especializada junto ao INSS de Teófilo Otoni-MG emitiu Parecer no qual firma posição no sentido da possibilidade de enquadramento, como segurado especial, dos trabalhadores que desenvolvem atividades típicas agrárias ocupando terras que margeiam rodovias. Sustenta a PFE/INSS/TO, em síntese, que a questão da titulação da terra é irrelevante para caracterização do trabalho na condição de segurado especial.
Esta manifestação veio a ser acolhida pela gerência executiva do INSS em Teófilo Otoni, que determinou sua observância no âmbito daquela unidade.
O caso chegou ao conhecimento da Coordenação-Geral de Benefícios do INSS, que divergindo das conclusões emanadas do Parecer da PFE/INSS/TO e sua adoção pela gerência do INSS em Teófilo Otoni, solicitou manifestação da Coordenação-Geral de Matéria de Benefícios da chefia nacional da PFE/INSS.
Indaga a Coordenação-Geral de Benefícios ao órgão de cúpula da PFE/INSS, se em razão do acolhimento da orientação da PFE/INSS/TO, "não estaria a Administração Pública reconhecendo direitos previdenciários de quem exerce atividades ilegais em propriedades alheias, em afronta ao direito de propriedade ou estimulando a ocupação ilegal de terras públicas".
Chamada a intervir no feito, manifestou-se a Coordenação-Geral de Matéria de Benefícios da PFE/INSS, por intermédio da Nota Técnica nº 133/06 expedida pela divisão de consultoria de benefícios, devidamente aprovada.
No referido pronunciamento, a Coordenação-Geral de Matéria de Benefícios da PFE/INSS, órgão a quem compete, no âmbito da Autarquia, as respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídico, alinhou-se e acolheu integralmente o entendimento jurídico que havia sido proclamado pela PFE/INSS de Teófilo Otoni.
Ainda não totalmente convencida da interpretação jurídica firmada pelo órgão consultivo a que está vinculada a Autarquia Previdenciária, a Coordenação-Geral de Benefícios da diretoria de benefícios do INSS solicitou ao Presidente do INSS que encaminhasse o caso à Secretaria de Políticas de Previdência Social desta Pasta, a fim de colher sua manifestação.
Por seu turno, a Secretaria de Políticas de Previdência Social, levando em conta a peculiaridade do assunto e a divergência de natureza eminentemente jurídica da questão, houve por bem em submeter o caso a apreciação desta Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência Social.
Acolhida tal proposição, vieram os autos a este órgão consultivo, por ordem do Sr. Ministro de Estado da Previdência Social.
Feito este relato, adentra-se no exame da questão.
Inicialmente deve ser ponderado que o caso amolda-se perfeitamente à hipótese prevista no art. 309, do Decreto nº 3.048/99, a seguir transcrito:
"Art. 309. Havendo controvérsia na aplicação de lei ou de ato normativo, entre órgãos do Ministério da Previdência e Assistência Social ou entidades vinculadas, ou ocorrência de questão previdenciária ou de assistência social de relevante interesse público ou social, poderá o órgão interessado, por intermédio de seu dirigente, solicitar ao Ministro de Estado da Previdência e Assistência Social solução para a controvérsia ou questão. (Redação dada pelo Decreto nº 3.452/00).
§ 1º - A controvérsia na aplicação de lei ou ato normativo será relatada in abstracto e encaminhada com manifestações fundamentadas dos órgãos interessados, podendo ser instruída com cópias dos documentos que demonstrem sua ocorrência. (Incluído pelo Decreto nº 4.729/03)
§ 2º - A Procuradoria Geral Federal Especializada/INSS deverá pronunciar-se em todos os casos previstos neste artigo. (Incluído pelo Decreto nº 4.729/03)."
Com efeito, afiguram-se presentes todas as circunstâncias necessárias à aplicação deste instrumento, seja quanto aos seus aspectos formais ou materiais.
Há evidente controvérsia entre órgãos componentes da estrutura deste Ministério ou a ela vinculadas, no caso, entre a Diretoria de Benefícios do INSS e a Procuradoria Federal oficiante junto àquela Autarquia, professando entendimentos diametralmente opostos.
Cuida-se, inegavelmente, de questão previdenciária de relevante interesse público ou social, na medida em que se projeta em considerável contingente de trabalhadores e famílias em situação de potencial ou efetivo risco social, e ainda, e principalmente, por trazer em seu conteúdo tema de matriz constitucional, no que diz respeito à universalidade da cobertura e do atendimento, princípio basilar da seguridade social (inciso I, do art. 194, CF/88).
Os requisitos formais acham-se igualmente supridos, ainda que por via oblíqua, sendo a divergência suscitada in abstracto e por agente competente (encaminhamento pelo dirigente máximo do INSS); com pronunciamento da Procuradoria Federal especializada do INSS (que não será ouvida novamente por ser parte na controvérsia); e havendo transitado o expediente pelo Gabinete do Sr. Ministro da Previdência Social, chegando, por fim, a esta consultoria jurídica.
O fato do INSS não ter feito expressa alusão ao dispositivo regulamentar antes transcrito não descaracteriza a natureza intrínseca do questionamento, sendo irrelevante esta omissão. O que não pode ser ignorado é que se trata de evidente controvérsia e como tal deve ser enfrentada e solucionada a questão, por via do mecanismo instituído pelo art. 309, do Decreto nº 3.048/99, conforme adiante se leva a efeito.
Numa primeira abordagem acerca do mérito da controvérsia, vislumbra-se estreito contato entre o tema em exame e sua análise sob as luzes do princípio da universalidade da cobertura e atendimento, erigido como premissa nuclear do sistema de seguridade social na Constituição da República de 1988:
"Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
I - universalidade da cobertura e do atendimento;
(...)"
Disso decorre a assunção de um compromisso de toda a sociedade, e particularmente do Poder Público, em promover a inserção, no sistema de seguro social, de todos os trabalhadores e seus respectivos beneficiários.
A respeito do princípio da universalidade, precisas são as palavras de Alfredo J. Ruprecht: (Ruprecht, Alfredo J. Direito da Seguridade Social. São Paulo: LTr, 1996. p. 76/77)
"A seguridade social só amparava, no início, certos e determinados grupos de trabalhadores em relação de dependência; depois, foi ampliando paulatinamente seu campo de aplicação, incluindo todos os trabalhadores. Mas, em sua constante evolução, ampara ou tende a amparar toda a sociedade".
Ainda sobre o tema, a lição do eminente professor Wagner Balera (Balera, Wagner. Sistema de Seguridade Social. São Paulo: LTr, 2000. p. 18), apresentando este princípio como faceta do primado da isonomia:
"A todos é reservado igual lugar, aquele que lhe confere cobertura e atendimento segundo a respectiva necessidade, na estrutura institucional da proteção social. Eis a razão de termos afirmado que a universalidade se constitui na específica dimensão do princípio da isonomia (garantia estatuída no art. 5º da Lei Maior), na Ordem Social. É a igual proteção para todos.
São dois os modos pelos quais se concretiza a universalidade.
De um lado, ela opera implementando prestações. De outro, ela identifica os sujeitos que farão jus a essas prestações. A universalidade da "cobertura" refere-se às situações da vida que serão protegidas. Quais sejam: todas e quaisquer contingências que possam gerar necessidades. Já a universalidade do "atendimento" diz respeito aos titulares do direito à proteção social. Todas as pessoas possuem tal direito."
Se este é um objetivo a ser buscado pela sociedade e pelo Estado - e assim está colocado na Constituição Federal - no momento da formulação e/ou interpretação de normas e políticas previdenciárias tal comando constitucional deve ser rigorosamente observado e tomado em consideração, tensionando tanto quanto possível no sentido da inclusão previdenciária.
Vale dizer que em nosso ordenamento jurídico, princípios são normas de direito positivo e, mais do que normas, são preceitos que se sobrepõem às demais normas, condicionando a validade destas.
Princípios são dotados de onivalência, auto-aplicabilidade e autoreferência, dando a necessária unidade ao sistema jurídico.
Não quer isto dizer que todos usufruirão exatamente os mesmos benefícios. Na conformação do nosso sistema previdenciário geral estes serão disponibilizados na medida particular segundo critérios de elegibilidade, na proporção dos aportes vertidos ou de acordo com as peculiaridades de determinadas atividades laborativas, entre outros fatores variáveis.
Pelo princípio da universalidade da cobertura e atendimento, em termos de previdência social e no plano subjetivo, compreende-se que a rede protetora previdenciária deve ser efetivamente acessível a todos os seus potenciais destinatários, quais sejam, todas as pessoas que trabalham no território nacional, além dos que contribuam facultativamente, e seus respectivos beneficiários.
Colocando o trabalhador rural neste cenário, verifica-se que a Constituição Federal de 1988 reservou-lhe dispositivo destacado, conforme § 8º, do art. 195:
"§ 8º - O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20/98)"
Descendo para uma abordagem no patamar das Leis, tem-se que a Lei nº 8.213/91, instituiu os planos de benefícios da Previdência Social, reproduzindo em seu art. 2º o princípio constitucional antes referido:
"Art. 2º - A Previdência Social rege-se pelos seguintes princípios e objetivos:
I - universalidade de participação nos planos previdenciários;
(...)"
No que concerne ao trabalhador produtor rural, a Lei nº 8.213/91, incluiu esta categoria no rol da figura genérica do segurado especial prevista no inciso VII, do art. 11, com a mesma feição dada pela CF/88, conforme se pode conferir a seguir:
"VII - como segurado especial: o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o garimpeiro (O garimpeiro está excluído por força da Lei nº 8.398/92, que alterou a redação do inciso VII do art. 12 da Lei nº 8.212/91.) o pescador artesanal e o assemelhado, que exerçam suas atividades, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros, bem como seus respectivos cônjuges ou companheiros e filhos maiores de 14 (quatorze) anos ou a eles equiparados, desde que trabalhem, comprovadamente, com o grupo familiar respectivo.
§ 1º - Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados."
Anteriormente à Constituição de 1988, diversos diplomas trataram da definição ou conceituação de trabalhador rural ao longo do tempo, valendo conferir alguns exemplares:
Decreto-Lei nº 789/69:
Dispõe sobre o enquadramento sindical rural e sobre o lançamento e recolhimento da contribuição sindical rural;
Lei Complementar nº 11/71:
Institui o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural, e dá outras providências;
Decreto nº 73.617/74:
Aprova o Regulamento de Programa de Assistência do Trabalhador Rural (PRO-RURAL);
Decreto nº 83.080/79:
Aprova o Regulamento dos Benefícios da Previdência Social.
Importante destacar que em todos esses diplomas que vigeram anteriormente à Constituição Federal de 1988 e à Lei nº 8.213/91, nota-se clara bipartição da figura do trabalhador rural em duas espécies: o trabalhador rural "Empregado", isto é, aquele que ostenta vínculo empregatício, e o "Produtor Rural", assim entendido aquele que explora as atividades agropecuárias por conta própria, isoladamente ou com auxílio da família.
Já a Constituição de 1988 e mais especificamente o Plano de Benefícios da Lei nº 8.213/91, mantiveram tal distinção, colocando o empregado rural na categoria comum de segurados empregados, conforme descrito a seguir:
"Art. 11 - São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: (Redação dada pela Lei nº 8.647/93):
I - como empregado: (Redação dada pela Lei nº 8.647/93):
a) aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração, inclusive como diretor empregado), e criando a figura do Segurado Especial (art. 11, inciso VII), na qual o produtor rural se inclui. Além destes dois grandes grupos, o trabalhador rural vem ainda mencionado como segurado da categoria avulso (art. 11, inciso VI), e como contribuinte individual (art. 11, inciso V, alínea "g").
Bom que se esclareça, desde logo, que o produtor aqui mencionado é aquele pequeno produtor, que trabalha "individualmente ou em regime de economia familiar" (inciso VII, do art. 11, Lei nº 8.213/91), e que não deve ser confundido com a figura do empregador ou empresário rural.
..................................................................................................
(V - como contribuinte individual: (Redação dada pela Lei nº 9.876/99)
a) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade agropecuária ou pesqueira, em caráter permanente ou temporário,diretamente ou por intermédio de prepostos e com auxílio de empregados, utilizados a qualquer título, ainda que de forma não contínua; (Redação dada pela Lei nº 9.876/99), definido no inciso V, do art. 11, da Lei nº 8.213/91."
Pois bem, da análise de toda legislação retro mencionada, surge a assertiva de que o que caracteriza a figura do segurado especial é o fato de produzir (produtor, diz a Constituição e a Lei nº 8.213/91) bens rurais com finalidade econômica, seja apenas para consumo próprio e subsistência de sua família ou para eventual comercialização do excedente.
É interessante notar que em nenhum ponto da Constituição de 1988 ou dos diplomas legislativos já mencionados neste estudo, ou ainda, em normas regulamentares ou atos normativos, aparece como condição para a caracterização da condição de produtor rural (agora incluído na denominação genérica segurado especial), a legitimação da terra utilizada para produção do bem econômico rural.
O requisito nuclear, essencial, segundo a Constituição de 1988 e as leis, para caracterização do trabalhador rural (segurado especial), é o desempenho - por conta própria ou com a ajuda da família - da atividade rural. É o produzir (produtor), e não a que título se ocupa a terra, sendo este, quando muito, um elemento meramente subjacente, cuja detenção do título fundiário funciona como um dos meios de prova do elemento fundamental, qual seja, o exercício da atividade rural.
Se a legislação previdenciária caracteriza o segurado especial como aquele que produz (produtor) bens rurais, sem colocar como condição a regularidade da ocupação do solo, não caberia ao intérprete fazê-lo.
Com efeito, isto se revela com maior clareza quando se analisam alguns dispositivos da Lei nº 8.213/91:
"Art. 48. A aposentadoria por idade será devida ao segurado que, cumprida a carência exigida nesta Lei, completar 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta), se mulher. (Redação dada pela Lei nº 9.032/95)
§ 1º - Os limites fixados no caput são reduzidos para sessenta e cinqüenta e cinco anos no caso de trabalhadores rurais, respectivamente homens e mulheres, referidos na alínea a do inciso I, na alínea g do inciso V e nos incisos VI e VII do art. 11. (Redação dada pela Lei nº 9.876/99)
§ 2º - Para os efeitos do disposto no parágrafo anterior, o trabalhador rural deve comprovar o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício pretendido.(Incluído pela Lei nº 9.032/95)."
.............................................................................................................
"Art. 106 - Para comprovação do exercício de atividade rural será obrigatória, a partir 16 de abril de 1994, a apresentação da Carteira de Identificação e Contribuição-CIC referida no § 3º do art. 12 da Lei nº 8.212/91. (Redação dada pela Lei nº 9.063/95)"
"Parágrafo único - A comprovação do exercício de atividade rural referente ao período anterior a 16 de abril de 1994, observado o disposto no § 3º do art. 55 desta Lei, far-se-á alternativamente através de: (Redação dada pela Lei nº 9.063/95)
I - contrato individual de trabalho ou Carteira de Trabalho e Previdência Social; (Redação dada pela Lei nº 8.870/94)
II - contrato de arrendamento, parceria ou comodato rural; (Redação dada pela Lei nº 8.870/94)
III - declaração do sindicato de trabalhadores rurais, desde que homologada pelo INSS; (Redação dada pela Lei nº 9.063/95)
IV - comprovante de cadastro do INCRA, no caso de produtores em regime de economia familiar; (Redação dada pela Lei nº 9.063/95)
V - bloco de notas do produtor rural. (Redação dada pela Lei nº 9.063/95)."
Pelo que anteriormente está destacado parece não haver dúvida de que o que o trabalhador rural deve comprovar é o efetivo exercício de atividade rural, sendo a regularidade da ocupação da terra apenas um dos meios de comprovar o desempenho da atividade, havendo ainda outros modos mencionados no Decreto nº 3.048/99 (art. 62).
Descendo ainda mais um pouco na hierarquia das normas e dada sua especificidade em relação ao trabalhador rural, impende mencionar em abono à tese ora exposta, o que dispõe a Portaria MPS nº 170/07, que disciplina os procedimentos para a caracterização desta categoria de segurado.
Verifica-se que em nenhum ponto a Portaria Ministerial excluiu da cobertura previdenciária o trabalhador rural que não apresente prova da regular ocupação da terra, e nem poderia fazê-lo.
Observa-se no ato ministerial, uma vez mais, que a única exigência que se faz é que o trabalhador rural comprove o efetivo exercício de atividade rural, conforme a seguir transcrito:
"Art. 3º - A comprovação do exercício de atividade rural do segurado especial, bem como de seu respectivo grupo familiar cônjuge, companheiro ou companheira, e filhos, inclusive os a estes equiparados, observada a idade mínima constitucionalmente estabelecida para o trabalho - desde que devidamente comprovado o vínculo familiar, será feita mediante a apresentação de um dos seguintes documentos:
O mencionado ato ainda enumera diversos documentos que poderão servir à comprovação do exercício da atividade rural (não se trata obviamente de rol taxativo, mormente pelo que dispõe o inc. IX (IX - outros documentos de início de prova material, desde que neles conste a profissão ou qualquer outro dado que evidencie o exercício da atividade rurícola e seja contemporâneo ao fato nele declarado, não se exigindo que se refira ao período a ser comprovado, podendo ser contemporâneos ou anteriores ao período e extraídos de registros efetivamente existentes, idôneos e acessíveis à Previdência Social.), dentre os quais apenas alguns dizem respeito ao domínio ou à posse ou outra modalidade contratual de ocupação do imóvel rural."
É dizer, o trabalhador pode comprovar o exercício da atividade rural por diversos modos, ainda que não apresente nenhum documento relativo à titulação fundiária ou que comprove a regularidade da ocupação do imóvel rural.
Aliás, todas estas normas sobre comprovação da atividade rural seguem uma orientação matriz, segundo a qual é possível a comprovação do tempo de serviço por todos os meios lícitos, desde que haja, necessariamente, um início de prova material, não se admitindo tão somente que a comprovação seja feita exclusivamente por prova testemunhal, conforme dispõe o § 3º, do art. 55 da Lei nº 8.213/91:
"Art. 55 - O tempo de serviço será comprovado na forma estabelecida no Regulamento, compreendendo, além do correspondente às atividades de qualquer das categorias de segurados de que trata o art. 11 desta Lei, mesmo que anterior à perda da qualidade de segurado:
(...)
§ 3º - A comprovação do tempo de serviço para os efeitos desta Lei, inclusive mediante justificação administrativa ou judicial, conforme o disposto no art. 108, só produzirá efeito quando baseada em início de prova material, não sendo admitida prova exclusivamente testemunhal, salvo na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, conforme disposto no Regulamento."
Disto se concluiu que a regularidade da ocupação da terra é apenas um dos meios de comprovar o desempenho da atividade rural, não sendo o único, exclusivo ou indispensável elemento probatório. O título da posse ou propriedade não se constitui, pois, em pressuposto de validade para enquadramento do trabalhador rural como segurado especial (obrigatório) da Previdência Social.
De modo que tudo está a indicar que a cobertura previdenciária alcança não o proprietário ou possuidor de imóvel rural, mas sim aquele que exerce atividade rural, que produz. O que o trabalhador rural deve comprovar é o exercício da atividade rural, a produção de bens rurais (individualmente ou com o concurso da entidade familiar), porque é este fato essencial que o torna segurado obrigatório do sistema de Previdência Social.
Portanto, não cabe à autarquia previdenciária impor como condição necessária para caracterização e enquadramento do trabalhador rural como produtor, e conseqüentemente, como segurado especial, a regularidade da titulação da terra.
Assim, numa análise exclusivamente técnico-jurídica, mostra-se contrário ao direito negar-se cobertura previdenciária ao trabalhador rural que, mercê de comprovar o efetivo exercício da atividade por outros meios, não reúna condições de demonstrar a regularidade da ocupação da terra que utiliza para sua produção.
Em alusão a outros questionamentos levantados no curso da presente controvérsia, em que pesem as louváveis preocupações manifestadas pela zelosa Diretoria de Benefícios do INSS, no sentido de que a Previdência Social ao reconhecer a condição de segurado especial ao ocupante de terra alheia, estaria incentivando uma conduta ilícita, algumas ponderações devem ser observadas.
Em primeiro lugar a Previdência Social e mais especificamente a autarquia previdenciária (INSS) não ostenta competência legal para reconhecer ou deixar de reconhecer a legitimidade da posse ou propriedade da terra. Em última análise, somente o Poder Judiciário é quem tem jurisdição para dirimir tais conflitos, com o auxílio, eventualmente, dos Cartórios Registrais.
Em segundo, não cabe ao INSS proteger a propriedade alheia, senão seus próprios bens. Se um possuidor ou proprietário de imóvel rural tolera a ocupação irregular de sua terra por terceiros, ao INSS não é dado substituir-se ao interessado pura e simplesmente.
Compete ao dono a defesa de seu patrimônio. É bem verdade que tendo o órgão público conhecimento de "suposto" cometimento de ilícito, teria o dever de levar o fato ao conhecimento da autoridade competente. Mas quem vai dizer se há ou não o ilícito, no que concerne ao direito de propriedade, não será o INSS.
Para resumir, não cabe à Previdência Social questionar se a ocupação da terra é legítima ou ilegítima, se existe direito de propriedade ou posse, se a posse é justa ou não, se existe justo título ou boa-fé, ou ainda, se o trabalhador rural poderia ou não ter produzido bens rurais nesta ou naquela área, se a ocupação da terra é fruto de invasão ou constrangimento ilegal. Estas questões pertencem a outra esfera de apreciação que não a Previdência Social.
Ao INSS cabe a missão indelegável de verificar se o interessado comprova o efetivo exercício da atividade rural, por todos os meios previstos na Lei e nos atos infra-legais já mencionados, não lhe cabendo afastar o enquadramento como segurado especial exclusivamente sob o pretexto de ocupação irregular da terra. Quem deve decidir se a ocupação da terra é ou não regular, e determinar ou não a desocupação, são as autoridades competentes, em última ratio, o Poder Judiciário.
E ainda que o Poder Judiciário venha a concluir que a ocupação é irregular decretando a desocupação, durante o período em que houve produção rural típica é possível o reconhecimento do enquadramento, vez que, como dito anteriormente, o que caracteriza a condição de segurado especial é o desempenho de atividade, nos termos do art. 11, inciso VII, e parágrafo primeiro, da Lei nº 8.213/99, e demais dispositivos correlatos.
Com o presente entendimento não se está aqui a defender a prática de esbulho possessório ou o que seja. O que se pretende esclarecer é que a existência desse tipo de conduta, a qual nem sempre poderá ser aquilatada de plano, não induz necessariamente à conclusão de que o possível esbulhador não possa valer-se do direito previdenciário que lhe é constitucionalmente assegurado.
Não se questiona, por outro lado, a competência e atribuição do INSS em verificar a veracidade dos documentos que lhe são apresentados, e, havendo fundada dúvida, rejeitá-los, o que não impede o interessado de comprovar sua condição de segurado por todos os outros meios já mencionados neste estudo.
Há que se ter clara, pois, a incomunicabilidade da relação jurídica dominial e a relação jurídica previdenciária. Coexistem paralelamente, são autônomas e independentes. Vale dizer, ainda que na origem a ocupação da terra seja irregular, este fato, por si mesmo, não contamina a relação jurídica previdenciária, porquanto, a contrário senso, a ocupação regular não é pressuposto de validade do enquadramento como segurado especial.
A relação jurídica de direito dominial, envolvendo entre outras questões a ocupação irregular de área rural, se dá entre o dono (ou possuidor) e o ocupante do imóvel, e não pertence à esfera de atribuições da Previdência Social. Esta, por sua vez deve se ocupar de verificar as questões atinentes às relações jurídicas previdenciárias advindas do exercício de atividade rural.
Para exemplificar, se o trabalhador rural eventualmente comercializar sua produção, ainda que a ocupação da área rural seja irregular, haverá necessariamente a imposição de contribuição previdenciária, vez que configurada a hipótese de incidência prevista no art. 25 da Lei nº 8.212/91:
"Art. 25 - A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea "a" do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de: (Redação dada pela Lei nº 10.256/01):
I - 2% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; (Redação dada pela Lei nº 9.528/97)
II - 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)
§ 1º - O segurado especial de que trata este artigo, além da contribuição obrigatória referida no caput, poderá contribuir, facultativamente, na forma do art. 21 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 8.540/92)"
Assim, a produção e eventual comercialização do bem rural tornam o sujeito titular de obrigações e direitos inerentes à relação jurídica previdenciária. Esta atividade coloca o sujeito na condição de segurado obrigatório da previdência social.
Isto é, a imperfeição ou vício da relação jurídica anterior (ocupação irregular) não invalida a relação jurídica tributária (dever de pagar a contribuição), e o mesmo raciocínio e critério devem ser observados, em contrapartida, para caracterização do trabalhador enquanto sujeito de direitos perante a previdência pública.
Vale lembrar que, para o segurado especial, a comercialização da produção não é requisito indispensável para sua caracterização e enquadramento nesta modalidade de segurado obrigatório.
Outrossim, do mesmo modo que a relação dominial não se comunica nem invalida a caracterização da relação previdenciária, esta, na mão inversa, também não pode se prestar a validar ou retirar o vício da relação subjacente anterior.
Portanto, a Previdência Social ao reconhecer o vínculo previdenciário, nas condições descritas neste trabalho, não estará coonestando, legitimando ou estimulando a prática de conduta antisocial ou antijurídica perpetrada isoladamente ou por grupos, que venham a ocupar indevidamente a propriedade alheia.
A título de reforço da tese, e mutatis mutandis, observam-se outras situações, especialmente no campo tributário, em que as relações jurídicas embora próximas, não devem ser confundidas, vez que providas de causas e efeitos próprios e autônomos.
É o que ocorre com a incidência do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, em que, ainda que a origem da renda seja criminosa, tal circunstância não afasta a hipótese de incidência do tributo:
"Lei nº 5.172, de 25 de Outubro de 1966 (Código Tributário Nacional):
Art. 43 - O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
(...)
§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidadeda fonte, da origem e da forma de percepção. (Incluído pela Lcp nº 104/01)
...................................................................................................."
"Lei nº 4.506, de 30 de Novembro de 1964. Dispõe sobre o imposto que recai sobre as rendas e proventos de qualquer natureza:
Art. 26 - Os rendimentos derivados de atividades ou transações ilícitas, ou percebidos com infração à lei, são sujeitos a tributação, sem prejuízo das sanções que couberem."
Como se vê, o fato gerador do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade econômica, não importando que sua origem seja ilegal ou produto de ilícito (relação jurídica precedente), devendo incidir o tributo pela prática do fato gerador (relação jurídica posterior), adquirir renda.
Isto não significa que a incidência do tributo legitimará a primeira conduta ou retirará do mundo jurídico aquele fato penalmente relevante. Tampouco se dirá que em razão da cobrança desses tributos o Estado estaria incentivando tal prática delituosa. As relações jurídicas são autônomas e independentes, tal como ocorre na hipótese objeto deste estudo.
Nessa perspectiva, não se pode admitir o afastamento da norma previdenciária, no que concerne à caracterização do segurado especial, em razão de conduta subjacente (ocupação irregular) que não guarda efetiva relação de dependência com o fato jurídico ensejador da sua aplicação (exercício da atividade rural), sob pena de se alargar indevidamente, sem base legal, os efeitos negativos daquele ato precedente.
Argumenta-se ainda que o reconhecimento da condição de segurado especial daquele que ocupa terra alheia para produção rural, por ser ilegal a ocupação, implicaria em reconhecer o mesmo direito previdenciário ao plantador de substância entorpecente.
Não procede a analogia. Há entre as duas situações uma distinção fundamental.
Como já referido anteriormente, o que caracteriza o produtor rural como segurado especial é o exercício de atividade rural, consubstanciado na produção de bens rurais apreciáveis economicamente, seja para subsistência ou para comercialização. Por óbvio o bem produzido deve ser lícito, considerado economicamente e de livre comercialização. Os atos de plantar, cultivar, colher e comercializar, em si mesmos considerados, são perfeitamente lícitos.
O fato de o rurícula eventualmente produzir em terra alheia, por si só, não torna o bem produzido ilegal, nem proibido de ingressar no comércio ou ser consumido.
Já no cultivo não autorizado de planta que sirva como matéria-prima de substâncias entorpecentes, não se tem a produção de um bem rural. O objeto produzido é ilícito e o próprio plantio, cultivo ou colheita caracteriza tipo penal, desnaturando a condição de produtor rural.
Para encerrar, mostra-se oportuno fazer referência aos profi-cientes estudos desenvolvidos pela PFE/INSS, em especial o Parecer elaborado pela PFE/INSS de Teófilo Otoni/MG, no qual se aborda o tema num plano jurídico consistente e elevado, cujos fundamentos e conclusões se apresentam irretorquíveis, aos quais aderimos expressamente.
Em remate, e volvendo ao argumento que iniciou esta exposição, cumpre relembrar que o caráter social da norma previdenciária requer uma interpretação finalística, isto é, em conformidade com seus objetivos, a valer aqui a exegese que melhor atenda a inclusão previdenciária, como corolário do princípio da universalidade da cobertura e do atendimento previdenciários.