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Mentir em processo de guarda justifica multa por litigância de má-fé, decide TJ-SP
Um casal de Pirassununga (SP) foi multado em R$ 400 por litigância de má-fé pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo por mentir ao processar a mãe de sua neta para requerer a guarda da criança.
Com uma procuração assinada pelo pai da menor, que é filho do casal de autores, e alegando abandono da criança por parte da genitora, os dois chegaram a obter a guarda provisória. No entanto, o pai da criança sofre de transtorno bipolar e afirmou que assinou a procuração sem saber que o objetivo dos avós era retirar a guarda da mãe.
Alteração da verdade dos fatos
Para o desembargador Vitor Frederico Kumpel, relator do caso, os avós “alteraram a verdade dos fatos” para fazer com que o juízo de Pirassununga, onde tramitou a ação em primeira instância, acreditasse que o pai da menina concordava com os pedidos iniciais, que foram atendidos a princípio.
O genitor se apresentou nos autos, negou o consentimento para que eles ingressassem com a ação e defendeu a manutenção da guarda da filha com a genitora.
“Incontroverso que o genitor não concordava com o pleito inicial, tanto é que se apresentou nos autos e contestou o feito negando os fatos narrados pelos autores. Evidente a alteração da verdade dos fatos pelos demandantes, cujos argumentos são contraditórios”, pontuou o relator.
Os desembargadores também reformaram a sentença de primeira instância para fixar os honorários de sucumbência com base na tabela da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).
Atuou na causa em favor da mãe da criança o advogado Eduardo Schiavoni. “A Justiça não é terra de ninguém. Existe a responsabilidade da boa-fé processual e ludibriar o pai da criança atinge de morte esse princípio”, diz ele.
Blackbox e manipulação de sistemas de IA na prática forense
São cada vez mais intensas e controversas as discussões de como a inteligência artificial (IA) tem se tornado uma ferramenta essencial na prática forense, facilitando a resolução de crimes e a análise de evidências (Russell; Norvig, 2016). No entanto, surgem preocupações éticas e de segurança quando se tenta contornar os “filtros” internos de sistemas de IA, como o ChatGPT, para obter informações de forma ilegal. Este Op-Ed examina brevemente os riscos ocultos dessas práticas e como a opacidade dos modelos de “caixa preta” pode minar a confiança nas análises forenses.
As discussões sobre a utilização de modelos de IA já estão focadas na produção de decisões judiciais em matéria penal, ou seja, no debate sobre as (im)possibilidades de modelos de apoio à decisão penal. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou as Resoluções 332/2020 e 363/2021 e a Portaria 271/2020, regulamentando a pesquisa, o desenvolvimento e a implementação de Modelos nos Tribunais (Peixoto, 2020). No entanto, muitas iniciativas acontecem “fora do radar”, sem um mínimo de maturidade tecnológica, no “oba-oba” da aparente facilidade da inteligência artificial generativa.
Embora não proibida no domínio penal, a IA “não deve ser estimulada, sobretudo com relação à sugestão de modelos de decisões preditivas” (Resolução 332/2020, artigo 23). Confira a publicação sobre “O Manto de Invisibilidade do uso da Inteligência Artificial no Processo Penal” ler (aqui) pois, este artigo já chamava a atenção para a complexidade do tema e para a questão relevante e pouco problematizada do “uso” de prova adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle, em desconformidade com as normas de transparência, produção, tratamento de dados e auditabilidade algorítmica.
Filtros
Os filtros internos são cruciais para impedir o uso mal-intencionado da IA protegendo a integridade dos dados e garantindo conformidade com normas legais e éticas (Floridi; Cowls, 2019). Esses filtros atuam como barreiras, evitando que informações sensíveis ou ilegais sejam acessadas ou manipuladas. A transparência desses filtros é essencial para manter a confiabilidade e a legitimidade das ferramentas de IA na prática forense (Goodman; Flaxman, 2017).
Qualquer uso de IA em contextos forenses deve respeitar as regras do jogo para evitar abusos e garantir a integridade das provas. No entanto, oportunistas operam sob o manto aparente da invisibilidade, mas deixam pegadas digitais que podem ser identificadas. Basta saber pedir as informações de acesso [logs, p.ex.].
Onde está o problema? Os modelos de “caixa preta” são frequentemente criticados pela falta de explicabilidade e transparência. Na prática forense tanto clareza quanto precisão são indispensáveis, razão pela qual a utilização desses modelos pode ser problemática (Doshi-Velez; Kim, 2017).
A incapacidade de explicar como um modelo de IA chegou a uma determinada conclusão compromete a integridade das análises forenses e a confiança pública nos resultados apresentados em tribunal (Lipton, 2018). Além disso, a utilização de modelos de IA por órgãos estatais sem a devida conformidade com normas de transparência e auditabilidade algorítmica impõe um sério risco à concretização de direitos fundamentais e ao devido processo legal.
A ausência de controle efetivo sobre a aquisição e o processamento de dados materializados em provas judiciais pode “legitimar” comportamentos oportunistas e abusivos, criando um “Manto da Invisibilidade” (Bierrenbach, 2021).
Contornar os filtros internos de sistemas de IA não só compromete a segurança, mas também a legalidade das operações forenses. Vamos além…a manipulação desses filtros pode levar a falhas graves na análise de evidências, prejudicando investigações e julgamentos. Além disso, tais práticas podem resultar em sanções legais severas e minar a confiança na aplicação da lei e na justiça (Mittelstadt et al., 2016).
A questão do “uso de prova”, por exemplo, já dito anteriormente, adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle em desconformidade com a normativa do CNJ e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ilustra bem os perigos envolvidos. O paradoxo se estabelece quando práticas vedadas internamente são aceitas externamente, criando um dualismo incoerente.
Em face do exposto, manter filtros robustos e transparentes nos sistemas de IA é essencial para proteger contra o uso ilegal e antiético dessas tecnologias na prática forense. A confiança nas análises forenses depende de um equilíbrio (…) de práticas éticas e de segurança no desenvolvimento de IA. Qual é o desafio?
O desafio é desenvolver IA que seja ao mesmo tempo poderosa e transparente, promovendo uma prática forense que respeite tanto a precisão quanto a ética (Rudin, 2019). Ao que tudo indica, a utilização responsável da IA alinha-se melhor com a proteção dos direitos fundamentais e o Devido Processo Legal._
Colegiado de juízes pronuncia trio pela morte de líder quilombola
Três homens acusados de envolvimento na execução de uma religiosa e líder quilombola na Bahia serão submetidos a júri popular. A decisão é de um colegiado composto por dois juízes e uma magistrada. Para não prejudicar o curso da ação quanto a esses réus, houve o desmembramento do processo em relação a mais dois denunciados — um foragido e o outro capturado na terça-feira (23/7) —, porque não constituíram advogado.
Instalado por ato da Corregedoria do Tribunal de Justiça da Bahia, após a repercussão nacional do caso, o colegiado está vinculado à 1ª Vara Criminal e do Júri de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. Na decisão de pronúncia, os juízes consideraram a materialidade do crime, comprovada pelo exame de corpo de delito, e verificaram a existência de “indícios relevantes de autoria”, devido às provas técnicas e testemunhais.
Representante do quilombo Caipora, a ialorixá Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, de 72 anos, foi morta com 25 tiros em sua casa, na comunidade de Pitanga dos Palmares, na noite de 17 de agosto de 2023. Dois homens invadiram a moradia e, antes de dispararem contra a vítima, ordenaram que três netos dela fossem até um quarto. Um dos atiradores ainda levou cinco celulares que havia no imóvel.
Crimes conexos e qualificadoras
Na decisão que pronunciou os réus, o colegiado de magistrados manteve os cinco crimes conexos de roubo dos aparelhos de telefonia imputados a um dos acusados, “em respeito à absoluta competência do tribunal popular”, e as quatro qualificadoras atribuídas ao homicídio: motivo torpe, emprego de meio insidioso ou cruel, recurso que tornou impossível a defesa da vítima e uso de arma de fogo de uso restrito ou proibido.
Diante dos indícios que constam nos autos, conforme os julgadores, não há como afastar as qualificadoras, porque eventual exclusão só seria possível se elas fossem manifestamente improcedentes e de todo descabidas. O colegiado também ratificou a prisão preventiva dos cinco denunciados. “Não obstante a repercussão nacional do caso concreto, destaca-se também a premeditação com que agiram os réus”, escreveram eles.
Segundo a decisão, “a ação foi arquitetada entre os supostos autores na condição de membros de organização criminosa”. As investigações apuraram que Mãe Bernardete era figura reconhecida pela luta referente ao assentamento, reconhecimento do quilombo como tal e pelo combate à exploração ilegal de madeira e à prática de tráfico de drogas. A resistência da vítima à expansão do comércio de entorpecentes motivou a sua morte._
Juiz pode impor honorários por condenação condicionada a evento futuro, decide STJ
Mesmo que a condenação do réu seja de uma obrigação de fazer condicionada a algum evento futuro, é possível que ele seja obrigado a pagar honorários de sucumbência antes de essa condição ser cumprida.
Essa conclusão é da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que negou provimento ao recurso especial de uma operadora de plano de saúde que discutia a base de cálculo dos honorários a serem pagos após ser derrotada na ação.
O caso é o de um beneficiário que precisou de cirurgia para instalação de stents — pequenos tubos usados para abrir vasos sanguíneos que tenham fluxo sanguíneo bloqueado. A operadora negou a cobertura.
Como o procedimento era de urgência, a filha do beneficiário fez o pagamento em cheques para que fosse feita a cirurgia. Na ação, ela pediu a condenação da operadora a arcar com os custos do tratamento e indenização por danos morais.
O pedido foi julgado procedente. A empresa foi condenada a pagar R$ 10 mil por danos morais e a cobrir os cheques caso esse débito viesse a ser cobrado da filha do beneficiário.
No entanto, ficou a dúvida se esse trecho da sentença deveria ser incluído no cálculo dos honorários de sucumbência, mesmo que a cobrança não tenha sido feita. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso entendeu que sim.
Pode cobrar
Relator da matéria no STJ, o ministro Antonio Carlos Ferreira observou que a solução para a dúvida está na análise do dispositivo do acórdão que condenou a operadora de plano de saúde ao pagamento dos honorários.
“A condenação envolve as duas verbas, tanto a da responsabilidade pelo débito hospitalar quanto a do pagamento dos danos morais. Embora a primeira tenha sido condicionada em relação ao autor da demanda, não o foi em relação aos honorários advocatícios.”
“(A empresa) Somente deve pagar o débito hospitalar se o autor for obrigado a efetuar tal pagamento, mas, em relação aos honorários advocatícios, a verba compõe a base de cálculo, segundo o que ficou definido no título executivo”, concluiu o relator._
O escritório Nelio Machado Advogados, natural continuidade daquele que o precedeu, Escritório de Advocacia Lino Machado, assim considerados ambos, tem existência que corresponde, na verdade, a 75 anos. Atuação marcada sobretudo em causas penais, inclusive ao tempo em que o país se defrontou com o regime de exceção, em face do golpe de 1964.
Suprimiu-se, naquele tempo, a garantia do Habeas Corpus. As prisões, sem forma e figura de juízo, aconteciam em toda parte, a toda hora, em todos os rincões do país. Foram poucos os defensores que se dedicaram a falar em nome dos destinatários das violências e torpezas do regime que se instaurou. A tortura era comum, ao lado de desaparecimentos e sequestros, sem que se tivesse a devida proteção dos tribunais, tolhidos para deliberar contra atos institucionais, cassações de mandatos e outros desmandos do poder.
Não foram poucos os seviciados, muitos os mortos, outros tantos desaparecidos. A despeito disso, registrando mérito sobretudo dos advogados que precederam a atual formação do escritório, há de se colocar a figura maiúscula e exemplar de Lino Machado, em sua luta intimorata para proteger os alvos do estado de exceção.
O professor Heleno Fragoso, em seu livro A Advocacia da Liberdade [1], escreveu para a história, revelando como era a atuação dos defensores de presos políticos, a frustração, o empenho, a coragem:
“Depois que os presos se recuperavam das torturas e depois que haviam feito confissões completas e minuciosas, as autoridades comunicavam a prisão, indicando falsamente a data em que fora realizada.
É fácil avaliar a frustração e o sentimento de impotência que se abatia sobre nós. Quero, porém, dizer que os advogados brasileiros que atuaram nesse período foram dignos das melhores tradições de nossa profissão, revelando coragem, independência e capacidade de luta, com os parcos meios de que dispúnhamos. Nunca nos abatemos. Denunciamos abertamente, com a maior veemência, a tortura em todos os casos em que efetivamente tinha ocorrido, e eram quase todos.
(…)
Lutamos todos com bravura e destemor, nunca época em que os mais fortes silenciavam. Não espanta, por isso, que nos considerassem como aliados e servidores da subversão e, assim, nós mesmos subversivos”.
Sobrevindo mais adiante, como se esperava, a Lei de Anistia, o reestabelecimento do Estado democrático de Direito, especialmente com a Constituição de 5 de outubro de 1988, os advogados prosseguiram, diuturnamente, na luta por liberdade e justiça.
Certo é, no entanto, que os desmandos, as violências e as práticas ilícitas a pretexto de punir delitos não cessaram, mudaram apenas de tom, delineando-se novo contexto. Influências alienígenas, de alguma forma, e reclamos desmedidos por justiçamento, acabaram por tornar o direito penal instrumento de perseguição, desrespeitando-se, não raro — ou mesmo frequentemente —, as garantias da nova carta política do país.
A dignidade da pessoa humana, as masmorras que são majoritariamente nossas prisões, a utilização dos meios de comunicação para execrar, estigmatizando seus alvos desde o início de investigações, tornou-se postura injustificável da autoridade policial, do Ministério Público e também de muitos magistrados, que se tornaram, lamentavelmente, combatentes do crime, verdugos, algozes, a fazer da presunção de inocência o oposto de seu enunciado.
Desnecessário dizer das operações espetaculosas, com eleição de alguns meios de informação privilegiados, que faziam o panegírico dos acusadores, referências encomiásticas aos juízes, sobretudo os que obravam como perseguidores, formando dupla com a autoridade policial ou com os promotores de Justiça. De quando em vez, a dupla se convolava em triunvirato acusatório — polícia, Ministério Público e magistrado —, todos operando por condenações bombásticas, em que a simbiose os transformava em um só, todos perseguidores, todos descompromissados com a lei e com a Constituição. Contra tudo isso, só a voz da defesa, daí a nobreza do ofício e a sua importância.
As notícias do dia a dia mostram, às escancaras, a desmoralização de investigados, pouco valendo a ulterior absolvição, eis que o espaço concedido à inocência nem de perto se aproxima ao que se tenha veiculado em desfavor do desventurado, a encontrar, aqui, ali e acolá, magistrados que desprezavam o ato de julgar, pensavam que estariam a combater o crime, agindo, sem pudor, como policiais. Mais uma vez, avulta o papel do defensor, daí porque Voltaire dizia ter inveja tão somente de não ter sido advogado. Grande honra e alta distinção, sem dúvida, é a de defender seus semelhantes.
Lamentavelmente, a dúvida tem se transformado em propensão à condenação, e não à exclusão de responsabilidade, com o que se conformam os magistrados inclinados, que largam de mão a imparcialidade, premissa de validade de qualquer julgamento.
O escritório jamais desertou dessa luta, nunca abandonou os ideais que o forjaram, em tempo algum se conformou com desvios, próprios da volúpia punitiva, com a celebração entusiasmada de algozes. A antítese se traduz em resistência, força da voz, energia dos pulmões, indignação da alma, intenso pulsar do coração, com o fito de obstacular, de modo resoluto e candente, afrontas ao Estado democrático de Direito.
Clamar pela inocência de seus constituintes, ou levantar, entre os ardores punitivos e os acusados, os ditames da lei, é compromisso de todos que integram o escritório Nelio Machado Advogados, conduta espontânea, natural, indeclinável e necessária por parte de todos, ontem, hoje e sempre.
Não cabe, por fim, dizer dos vários casos em que o escritório tenha atuado, nem mesmo os de que atualmente se ocupa, desde crimes previstos no Código Penal e leis extravagantes. A rigor, o que importa são os princípios, aqueles que os advogados do escritório obedecem, seguindo a mesma liturgia, a mesma cartilha, a deontologia da profissão, tornando perene o exemplo e a memória dos seus antecessores, pilares de sua sustentação.
Afastamento por doença causada pelo empregador não retira adicional de atividade
A 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região manteve, por unanimidade, adicional de atividade a uma carteira que teve de ser readaptada após ter sido afastada das funções de distribuição e coleta de correspondências e encomendas em vias públicas pelos Correios.
O afastamento se deu por doença profissional causada pelo esforço excessivo ao manejar, sacudir e arremessar objetos. Segundo os autos, a profissional foi removida das atividades externas em maio de 2022, inicialmente por 90 dias, mas as restrições foram mantidas após esse período.
Com isso, em janeiro de 2023, a empresa cortou o pagamento do adicional de atividade. No entanto, o TRT-2 interpretou que, ainda que a trabalhadora tenha deixado de realizar tais tarefas, não pode ter prejuízo devido a um quadro de saúde provocado pelo próprio empregador.
A magistrada Eliane Aparecida da Silva Pedroso, relatora do caso, destacou no acórdão que a conduta dos Correios é indevida, uma vez que a profissional foi vítima de doença de trabalho e não deu causa à readaptação funcional, compatível com as limitações adquiridas em decorrência de suas atividades. “Inadmissível, portanto, onerar a própria vítima, impondo-se a manutenção da verba.”A decisão se baseia no artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal, que consagra a irredutibilidade salarial, e nos artigos 187, 927 e 950 do Código Civil, que determinam o dever objetivo de reparação àqueles que causam dano. Fundamenta-se, também, em jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho envolvendo o mesmo adicional.
Com a decisão, a instituição terá que restabelecer o pagamento do adicional, desde a data da supressão, com todos os reflexos em férias, 13º salário e depósitos do FGTS. Com informações da assessoria de imprensa do TRT-2._
Há justiça imparcial quando o julgador manifesta desprezo pelas mulheres?
Na última quarta-feira, dia 17 de julho, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) acolheu pedido formulado pela OAB do Paraná e decidiu afastar do cargo o desembargador Luís Cesar de Paula Espíndola, do Tribunal de Justiça do Paraná, por reiteradas manifestações misóginas proferidas em sessões de julgamento com competência para decidir casos relacionados, entre outras matérias, ao Estatuto de Criança e Adolescente (exceto matéria infracional) e ao Direito de Família.
Na sessão de julgamento mais recente — e que ganhou repercussão nacional — a discussão dirigia-se à manutenção de medida protetiva de distanciamento proposta pelo Ministério Público em favor de uma aluna de 12 anos, que em escuta especializada realizada conforme prevista na Lei nº 13.431/2017, relatou ter sido assediada, diversas vezes, pelo seu professor. Acuada com a insistência, passou a se esconder no banheiro da escola para evitar as suas aulas. Outras colegas também teriam se constrangido com o excesso de aproximação do professor em atividades coletivas na sala de aula.
A decisão, por maioria, manteve a medida protetiva. Ficou vencido o referido relator por fundamentos que não estavam amparados em dispositivos legais pertinentes à matéria.
Em sua fala, referido desembargador minimizou expressivamente a gravidade dos fatos reportados [1], culpabilizou a vítima pelo assédio sofrido e, em tom jocoso, desmereceu a luta pela erradicação da violência de gênero. “Ego de adolescente, precisava de atenção (…) O mundo agora está muito cheio de dedos”, afirmou.
Suas manifestações não se encerraram no julgamento do caso. Em resposta à manifestação da desembargadora Ivanise Tratz Martins (que não compunha o quórum, mas que ao seu término advertiu sobre o necessário cumprimento do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), o desembargador continuou:
“Eu não poderia deixar de responder o que Vossa Excelência falou, que não tem nada a ver com o processo, um discurso feminista, desatualizado, porque se Vossa Excelência sair na rua hoje em dia, quem está assediando, quem está correndo atrás de homens são as mulheres. Essa é a realidade. As mulheres estão loucas atrás dos homens, porque são muito poucos. É só sair à noite! Eu não saio muito à noite, mas eu conheço… tenho funcionárias; tenho, sabe, contato com o mundo. Nossa, a mulherada está louca atrás de homem e louca para levar um elogio, uma piscada, uma cantada educada, porque elas é que estão cantando, elas que estão assediando, porque não tem homem. Hoje em dia os cachorrinhos estão sendo os companheiros das mulheres. Vai no parque e só tem mulher com cachorrinho, louca para encontrar um companheiro, para conversar e eventualmente para namorar. (…) lascívia, não sei o que significa isso, agora, homem e mulher normalmente, hoje em dia existem várias tribos (risos). A conduta, a atração, a mulher ser bonita e o homem também, né. É coisa dos sexos. Agora, a coisa chegou a um ponto hoje em dia que as mulheres é que estão assediando. Não sei se Vossa Excelência sabe, professores de faculdade são assediados. É ou não é? Quando saem da faculdade deixam, um monte de ‘viúvas’. As mulheres… Ah, das mulheres ninguém está correndo atrás, porque mulher está sobrando.” [2]
Sem dúvidas, o longo discurso — estereotipado e discriminatório — proferido pelo julgador afronta as diretrizes estabelecidas pela Resolução 492, aprovada pelo CNJ em 17 de março de 2023 (Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), que devem ser rigorosamente observadas por todo o sistema de justiça.
Manifestação viola tratados internacionais sobre Direitos Humanos
A obrigação de julgar a partir de uma perspectiva de gênero não é tema novo. Está presente na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher — Cedaw (1984), na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1996), entre outros diversos documentos internacionais que versam sobre direitos humanos. Tais textos reconhecem que as desigualdades, a discriminação e a violência de gênero são transversais a todas as instituições públicas e que no reconhecimento dessas desigualdades é que direitos são reconhecidos.
O Brasil já foi responsabilizado pela Corte IDH por discriminação no acesso à Justiça, por não investigar e julgar a partir da perspectiva de gênero e pela utilização de estereótipos negativos em relação à vítima, no Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil. Nos §§ 138-150, a sentença referiu a Recomendação Geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça da Cedaw para advertir que “a presença de estereótipos de gênero no sistema judicial impacta de forma grave o pleno desfrute dos direitos humanos das mulheres, uma vez que podem impedir o acesso à justiça em todas as esferas da lei e podem afetar particularmente as mulheres vítimas e sobreviventes de violência”.
Preconceitos pessoais e estereótipos de gênero, para a Corte IDH, “afetam a objetividade dos funcionários estatais encarregados de apurar as denúncias que lhes são apresentadas, influenciando sua percepção quando determinam se ocorreu ou não um ato de violência, em sua avaliação da credibilidade das testemunhas e da própria vítima”.
Para além de destacar a violação de compromissos internacionais ratificados pelo Brasil e de normas de direito interno com força vinculante, os reiterados episódios que envolvem tanto a vida particular quanto profissional do desembargador (indicados na decisão proferida pelo CNJ na Reclamação Disciplinar 0003915-47.2024.2.00.0000) e que evidenciam pré-julgamentos e desprezo pelas mulheres invocam outra discussão: há julgamento imparcial quando o julgador manifesta desprezo contra mulheres?
Imparcialidade nos processos sob perspectiva de gênero
A imparcialidade constitui fundamento primeiro para o exercício de uma jurisdição democrática. Não é ele um elemento uniforme, imanente a qualquer organização judicial, mas um predicado que precisa ser construído, para o qual operam os específicos valores constitucionais de cada país.
Na lição de Julio Maier, “não se compreende a palavra ‘juiz’, ao menos no sentido moderno, sem o qualificativo de imparcial”. Isto porque sua origem etimológica — in-partial — refere-se àquele que não é parte em um assunto que deve julgar e, no conceito semântico, “atribui-se a quem não detém ‘pré-juízos’ positivos ou negativos em relação à pessoa ou matéria sobre a qual deve decidir”. [3]
Em relação a esses “pré-juízos”, ao menos juridicamente, não há ferramentas para acessar o inconsciente e aferir valores morais ou aspectos culturais que possam influenciar uma decisão. Por isso, essa compreensão de imparcialidade deve estar relacionada com uma obrigação de que o julgador, que em sua vida particular (lamentavelmente) seja racista, homofóbico ou misógino, não ceda à tentação de decidir conforme a sua consciência. Ele deve se submeter à Constituição, porque é por meio dela que os destinatários da atividade jurisdicional estarão protegidos desses estímulos particulares — conscientes ou não.
A criação de mecanismos de monitoramento e avaliação de padrões de parcialidade nas decisões judiciais (até porque a crença na neutralidade judicial é ingênua), assim como a implementação de programas de capacitação contínua para magistrados, focados em igualdade de gênero e direitos humanos, podem colaborar para a redução do número de decisões enviesadas no Brasil.
Contudo, quando esse preconceito é explicitamente identificado, algo imediato deve ser feito.
O pré-julgamento ou posturas ideologicamente matizadas indicam evidente inclinação subjetiva sobre o conteúdo de futuras decisões e caracteriza parcialidade para julgar interesses ou direitos, no caso do machismo, de mulheres.
Pergunta-se: seria possível garantir confiabilidade ou democraticidade em decisões proferidas por um julgador cuja incontinência verbal e linguagem incendiária o coloca na posição de inimigo de mulheres? A resposta, decerto, que não.
O machismo tem um impacto significativo na imparcialidade dos magistrados. Por isso, quando a força vinculante do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero não é suficiente a impor-lhe limites, essa parcialidade deve ser declarada pelas instâncias de controle e atacada com uma adequada resposta administrativa, para proteger as jurisdicionadas e a própria credibilidade no Poder Judiciário.
O exemplo trazido, que apenas ganhou destaque por não se tratar de caso que tramita em segredo de justiça, certamente não será o último. É necessário dar amplitude a situações como essa para que não se repitam (ou não com a mesma intensidade). A confiança no sistema jurisdicional depende da responsabilidade dos magistrados no cumprimento de seus deveres.
Se é machista, não é imparcial e não é justiça.
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[1] Não se pretende interferir na forma independente como deve o magistrado interpretar o conjunto probatório, mas rechaçar a indevida naturalização do assédio sexual, o que reforça um processo de revitimização de mulheres e meninas que sofrem violência de gênero. As autoras compreendem que há dois caminhos a serem trilhados pelas vítimas: aquele que visa a expansão do poder punitivo e aquele que busca expandir o poder de compreensão (ARGUELLO, Katie Silene Cáceres et at. Vitimologia e Gênero: considerações crítico-feministas a partir da sentença do Caso Mariana Ferrer. In: Captura críptica. Florianópolis, v.12, n.2, 2023, p. 259-292). O caminho proposto é aquele de mais direitos, garantias, engajado em uma política criminal da criminologia crítica orientada à maior participação da vítima no processo, menor intervenção punitiva e focada na justiça restaurativa.
[2] Sessão originalmente disponível no link: https://www.youtube.com/live/cQMtllvULBs. Após repercussão, o conteúdo foi removido pelo TJPR.
[3] MAIER, Julio B.J. Derecho Procesal Penal. Tomo I: Fundamentos. 2ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, p. 739._
STJ concedeu 996 Habeas Corpus para aplicar jurisprudência de tráfico privilegiado em 2024
De 1º de janeiro a 22 de julho de 2024, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem em Habeas Corpus e recursos em HC 996 vezes apenas para aplicar jurisprudência pacífica em casos envolvendo o redutor de pena conhecido como tráfico privilegiado.
Os dados foram compilados pelo advogado David Metzker e indicam o tamanho da renitência das instâncias ordinárias em obedecer posições firmadas pelo tribunal responsável por uniformizar a interpretação da lei federal.
O redutor de pena do tráfico privilegiado é previsto no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas e se destina ao caso do traficante de primeira viagem, que é primário, de bons antecedentes e que ainda não se encontra inserido na criminalidade.
Sua aplicação reduz a pena mínima, que seria de quatro anos, para até um ano e oito meses — a redução pode ser menor, a depender do caso. Como já mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, ele é fonte de grande embate nos tribunais.
Os dados mostram que, ao todo, o tema do tráfico privilegiado gerou a concessão de ordem em 1.223 casos. Em 996 deles, a aplicação do redutor foi recusada pelos tribunais estaduais com base em três fatores:
— Quantidade de drogas;
— O réu ter contra si outras ações penais ou inquéritos em andamento;
— O réu ter no histórico ato infracional análogo ao tráfico de drogas.
Nenhum desses motivos justifica o afastamento do redutor de pena, tampouco comprova que o réu se dedica a atividades criminosas ou integra organização criminosa, conforme a interpretação do STJ.
Em suma, 81,4% dos HCs e RHCs concedidos em 2024 para aplicação do tráfico privilegiado tratam de temas pacificados na jurisprudência do STJ.
Sempre ele
Os dados mostram que a corte estadual que mais desrespeita os precedentes do STJ é a de São Paulo. Dos 1.223 HCs e RHCs concedidos sobre tráfico privilegiado, 733 viram do Tribunal de Justiça paulista (59,9%). O segundo colocado nesse ranking é o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com um décimo do número (73).
A renitência é tamanha que gerou mais um embate público com o STJ. Isso ocorreu no HC 913.210, em que o desembargador convocado Jesuíno Rissato advertiu o TJ-SP de que precedentes qualificados e a jurisprudência do STJ estavam sendo descumpridos.
A resposta foi uma nota assinada pelo presidente da Seção Criminal do TJ Paulista, desembargador Camargo Aranha Filho, que criticou a “lógica do tudo ou nada” na formação do sistema de precedentes brasileiro.
O caso concreto trata de um réu que teve o redutor de pena negado porque respondia a outra ação por tráfico e devido à elevada quantidade de drogas que trazia consigo.
O STJ tem tese vinculante, no Tema 1.139, que veda a utilização de inquéritos e/ou ações penais em curso para impedir a aplicação do redutor de pena.
A corte tem posição firme no sentido de que a quantidade de drogas apreendida só serve para modular a fração de redução da pena na terceira fase da dosimetria, desde que não tenha sido considerada para aumentar a pena-base.
Ato infracional
O levantamento de Metzker mostra que a questão da quantidade de drogas, isoladamente, foi a que mais gerou concessão de ordem para reduzir a pena do réu: 672 vezes. Já os casos em que o réu tinha ação penal ou inquérito policial em andamento foram 192.
O terceiro motivo, com 54 casos, foi o fato de o réu ter praticado ato infracional análogo ao tráfico de drogas quando era adolescente. Tribunais e juízes consideram um indicativo de que ele se dedica a atividades criminosas.
Nesse ponto, a jurisprudência passou por alterações. Desde 2021, a 3ª Seção do STJ entende que o registro de atos infracionais pode afastar a aplicação do tráfico privilegiado, quando os fatos sejam graves, bem documentados e não afastados no tempo.
Um exemplo citado foi o caso de um réu primário que tinha 71 infrações enquanto menor de idade. Ministros apontam a necessidade de avaliar, caso a caso, para ver se há ou não dedicação a atividades criminosa.
A concessão de ordem em 54 casos indica que as cortes não fizeram essa análise de forma adequada.
51 HCs por dia
Os casos de tráfico privilegiado fazem parte de um universo maior e crescente do uso de Habeas Corpus, que há tempos gera preocupação no STJ.
De janeiro a 22 de julho, o tribunal concedeu a ordem 10.598 vezes — a média diária é de 51,9 concessões, o que indica um crescimento de 19,3% em relação a 2023, quando o STJ concedeu 43,5 HCs e RHCs por dia.
Mais da metade é sobre tráfico de drogas: foram 5.521, que correspondem a 52% do total. Desses, 5.451 (98,7%) foram decididos de maneira monocrática, o que indica que houve aplicação de posições pacificadas.
Já dados do tribunal mostram que, até junho, foram registrados 44.587 Habeas Corpus e 8.402 e recursos em HC. A presidente da corte, ministra Maria Thereza de Assis, mostrou preocupação com os números no encerramento do semestre forense.
Não há perspectiva de melhora imediata. A decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu balizas para diferenciar tráfico e porte de maconha, por exemplo, deve gerar uma nova onda de HCs no STJ. Ministros da casa já se preparam para aplicar a decisão._
Mentir em processo de guarda justifica multa por litigância de má-fé, decide TJ-SP
Um casal de Pirassununga (SP) foi multado em R$ 400 por litigância de má-fé pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo por mentir ao processar a mãe de sua neta para requerer a guarda da criança.
Com uma procuração assinada pelo pai da menor, que é filho do casal de autores, e alegando abandono da criança por parte da genitora, os dois chegaram a obter a guarda provisória. No entanto, o pai da criança sofre de transtorno bipolar e afirmou que assinou a procuração sem saber que o objetivo dos avós era retirar a guarda da mãe.
Alteração da verdade dos fatos
Para o desembargador Vitor Frederico Kumpel, relator do caso, os avós “alteraram a verdade dos fatos” para fazer com que o juízo de Pirassununga, onde tramitou a ação em primeira instância, acreditasse que o pai da menina concordava com os pedidos iniciais, que foram atendidos a princípio.
O genitor se apresentou nos autos, negou o consentimento para que eles ingressassem com a ação e defendeu a manutenção da guarda da filha com a genitora.
“Incontroverso que o genitor não concordava com o pleito inicial, tanto é que se apresentou nos autos e contestou o feito negando os fatos narrados pelos autores. Evidente a alteração da verdade dos fatos pelos demandantes, cujos argumentos são contraditórios”, pontuou o relator.
Os desembargadores também reformaram a sentença de primeira instância para fixar os honorários de sucumbência com base na tabela da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).
Atuou na causa em favor da mãe da criança o advogado Eduardo Schiavoni. “A Justiça não é terra de ninguém. Existe a responsabilidade da boa-fé processual e ludibriar o pai da criança atinge de morte esse princípio”, diz ele.
Blackbox e manipulação de sistemas de IA na prática forense
São cada vez mais intensas e controversas as discussões de como a inteligência artificial (IA) tem se tornado uma ferramenta essencial na prática forense, facilitando a resolução de crimes e a análise de evidências (Russell; Norvig, 2016). No entanto, surgem preocupações éticas e de segurança quando se tenta contornar os “filtros” internos de sistemas de IA, como o ChatGPT, para obter informações de forma ilegal. Este Op-Ed examina brevemente os riscos ocultos dessas práticas e como a opacidade dos modelos de “caixa preta” pode minar a confiança nas análises forenses.
As discussões sobre a utilização de modelos de IA já estão focadas na produção de decisões judiciais em matéria penal, ou seja, no debate sobre as (im)possibilidades de modelos de apoio à decisão penal. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou as Resoluções 332/2020 e 363/2021 e a Portaria 271/2020, regulamentando a pesquisa, o desenvolvimento e a implementação de Modelos nos Tribunais (Peixoto, 2020). No entanto, muitas iniciativas acontecem “fora do radar”, sem um mínimo de maturidade tecnológica, no “oba-oba” da aparente facilidade da inteligência artificial generativa.
Embora não proibida no domínio penal, a IA “não deve ser estimulada, sobretudo com relação à sugestão de modelos de decisões preditivas” (Resolução 332/2020, artigo 23). Confira a publicação sobre “O Manto de Invisibilidade do uso da Inteligência Artificial no Processo Penal” ler (aqui) pois, este artigo já chamava a atenção para a complexidade do tema e para a questão relevante e pouco problematizada do “uso” de prova adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle, em desconformidade com as normas de transparência, produção, tratamento de dados e auditabilidade algorítmica.
Filtros
Os filtros internos são cruciais para impedir o uso mal-intencionado da IA protegendo a integridade dos dados e garantindo conformidade com normas legais e éticas (Floridi; Cowls, 2019). Esses filtros atuam como barreiras, evitando que informações sensíveis ou ilegais sejam acessadas ou manipuladas. A transparência desses filtros é essencial para manter a confiabilidade e a legitimidade das ferramentas de IA na prática forense (Goodman; Flaxman, 2017).
Qualquer uso de IA em contextos forenses deve respeitar as regras do jogo para evitar abusos e garantir a integridade das provas. No entanto, oportunistas operam sob o manto aparente da invisibilidade, mas deixam pegadas digitais que podem ser identificadas. Basta saber pedir as informações de acesso [logs, p.ex.].
Onde está o problema? Os modelos de “caixa preta” são frequentemente criticados pela falta de explicabilidade e transparência. Na prática forense tanto clareza quanto precisão são indispensáveis, razão pela qual a utilização desses modelos pode ser problemática (Doshi-Velez; Kim, 2017).
A incapacidade de explicar como um modelo de IA chegou a uma determinada conclusão compromete a integridade das análises forenses e a confiança pública nos resultados apresentados em tribunal (Lipton, 2018). Além disso, a utilização de modelos de IA por órgãos estatais sem a devida conformidade com normas de transparência e auditabilidade algorítmica impõe um sério risco à concretização de direitos fundamentais e ao devido processo legal.
A ausência de controle efetivo sobre a aquisição e o processamento de dados materializados em provas judiciais pode “legitimar” comportamentos oportunistas e abusivos, criando um “Manto da Invisibilidade” (Bierrenbach, 2021).
Contornar os filtros internos de sistemas de IA não só compromete a segurança, mas também a legalidade das operações forenses. Vamos além…a manipulação desses filtros pode levar a falhas graves na análise de evidências, prejudicando investigações e julgamentos. Além disso, tais práticas podem resultar em sanções legais severas e minar a confiança na aplicação da lei e na justiça (Mittelstadt et al., 2016).
A questão do “uso de prova”, por exemplo, já dito anteriormente, adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle em desconformidade com a normativa do CNJ e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ilustra bem os perigos envolvidos. O paradoxo se estabelece quando práticas vedadas internamente são aceitas externamente, criando um dualismo incoerente.
Em face do exposto, manter filtros robustos e transparentes nos sistemas de IA é essencial para proteger contra o uso ilegal e antiético dessas tecnologias na prática forense. A confiança nas análises forenses depende de um equilíbrio (…) de práticas éticas e de segurança no desenvolvimento de IA. Qual é o desafio?
O desafio é desenvolver IA que seja ao mesmo tempo poderosa e transparente, promovendo uma prática forense que respeite tanto a precisão quanto a ética (Rudin, 2019). Ao que tudo indica, a utilização responsável da IA alinha-se melhor com a proteção dos direitos fundamentais e o Devido Processo Legal._
Colegiado de juízes pronuncia trio pela morte de líder quilombola
Três homens acusados de envolvimento na execução de uma religiosa e líder quilombola na Bahia serão submetidos a júri popular. A decisão é de um colegiado composto por dois juízes e uma magistrada. Para não prejudicar o curso da ação quanto a esses réus, houve o desmembramento do processo em relação a mais dois denunciados — um foragido e o outro capturado na terça-feira (23/7) —, porque não constituíram advogado.
Instalado por ato da Corregedoria do Tribunal de Justiça da Bahia, após a repercussão nacional do caso, o colegiado está vinculado à 1ª Vara Criminal e do Júri de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. Na decisão de pronúncia, os juízes consideraram a materialidade do crime, comprovada pelo exame de corpo de delito, e verificaram a existência de “indícios relevantes de autoria”, devido às provas técnicas e testemunhais.
Representante do quilombo Caipora, a ialorixá Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, de 72 anos, foi morta com 25 tiros em sua casa, na comunidade de Pitanga dos Palmares, na noite de 17 de agosto de 2023. Dois homens invadiram a moradia e, antes de dispararem contra a vítima, ordenaram que três netos dela fossem até um quarto. Um dos atiradores ainda levou cinco celulares que havia no imóvel.
Crimes conexos e qualificadoras
Na decisão que pronunciou os réus, o colegiado de magistrados manteve os cinco crimes conexos de roubo dos aparelhos de telefonia imputados a um dos acusados, “em respeito à absoluta competência do tribunal popular”, e as quatro qualificadoras atribuídas ao homicídio: motivo torpe, emprego de meio insidioso ou cruel, recurso que tornou impossível a defesa da vítima e uso de arma de fogo de uso restrito ou proibido.
Diante dos indícios que constam nos autos, conforme os julgadores, não há como afastar as qualificadoras, porque eventual exclusão só seria possível se elas fossem manifestamente improcedentes e de todo descabidas. O colegiado também ratificou a prisão preventiva dos cinco denunciados. “Não obstante a repercussão nacional do caso concreto, destaca-se também a premeditação com que agiram os réus”, escreveram eles.
Segundo a decisão, “a ação foi arquitetada entre os supostos autores na condição de membros de organização criminosa”. As investigações apuraram que Mãe Bernardete era figura reconhecida pela luta referente ao assentamento, reconhecimento do quilombo como tal e pelo combate à exploração ilegal de madeira e à prática de tráfico de drogas. A resistência da vítima à expansão do comércio de entorpecentes motivou a sua morte._
Juiz pode impor honorários por condenação condicionada a evento futuro, decide STJ
Mesmo que a condenação do réu seja de uma obrigação de fazer condicionada a algum evento futuro, é possível que ele seja obrigado a pagar honorários de sucumbência antes de essa condição ser cumprida.
Essa conclusão é da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que negou provimento ao recurso especial de uma operadora de plano de saúde que discutia a base de cálculo dos honorários a serem pagos após ser derrotada na ação.
O caso é o de um beneficiário que precisou de cirurgia para instalação de stents — pequenos tubos usados para abrir vasos sanguíneos que tenham fluxo sanguíneo bloqueado. A operadora negou a cobertura.
Como o procedimento era de urgência, a filha do beneficiário fez o pagamento em cheques para que fosse feita a cirurgia. Na ação, ela pediu a condenação da operadora a arcar com os custos do tratamento e indenização por danos morais.
O pedido foi julgado procedente. A empresa foi condenada a pagar R$ 10 mil por danos morais e a cobrir os cheques caso esse débito viesse a ser cobrado da filha do beneficiário.
No entanto, ficou a dúvida se esse trecho da sentença deveria ser incluído no cálculo dos honorários de sucumbência, mesmo que a cobrança não tenha sido feita. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso entendeu que sim.
Pode cobrar
Relator da matéria no STJ, o ministro Antonio Carlos Ferreira observou que a solução para a dúvida está na análise do dispositivo do acórdão que condenou a operadora de plano de saúde ao pagamento dos honorários.
“A condenação envolve as duas verbas, tanto a da responsabilidade pelo débito hospitalar quanto a do pagamento dos danos morais. Embora a primeira tenha sido condicionada em relação ao autor da demanda, não o foi em relação aos honorários advocatícios.”
“(A empresa) Somente deve pagar o débito hospitalar se o autor for obrigado a efetuar tal pagamento, mas, em relação aos honorários advocatícios, a verba compõe a base de cálculo, segundo o que ficou definido no título executivo”, concluiu o relator._
O escritório Nelio Machado Advogados, natural continuidade daquele que o precedeu, Escritório de Advocacia Lino Machado, assim considerados ambos, tem existência que corresponde, na verdade, a 75 anos. Atuação marcada sobretudo em causas penais, inclusive ao tempo em que o país se defrontou com o regime de exceção, em face do golpe de 1964.
Suprimiu-se, naquele tempo, a garantia do Habeas Corpus. As prisões, sem forma e figura de juízo, aconteciam em toda parte, a toda hora, em todos os rincões do país. Foram poucos os defensores que se dedicaram a falar em nome dos destinatários das violências e torpezas do regime que se instaurou. A tortura era comum, ao lado de desaparecimentos e sequestros, sem que se tivesse a devida proteção dos tribunais, tolhidos para deliberar contra atos institucionais, cassações de mandatos e outros desmandos do poder.
Não foram poucos os seviciados, muitos os mortos, outros tantos desaparecidos. A despeito disso, registrando mérito sobretudo dos advogados que precederam a atual formação do escritório, há de se colocar a figura maiúscula e exemplar de Lino Machado, em sua luta intimorata para proteger os alvos do estado de exceção.
O professor Heleno Fragoso, em seu livro A Advocacia da Liberdade [1], escreveu para a história, revelando como era a atuação dos defensores de presos políticos, a frustração, o empenho, a coragem:
“Depois que os presos se recuperavam das torturas e depois que haviam feito confissões completas e minuciosas, as autoridades comunicavam a prisão, indicando falsamente a data em que fora realizada.
É fácil avaliar a frustração e o sentimento de impotência que se abatia sobre nós. Quero, porém, dizer que os advogados brasileiros que atuaram nesse período foram dignos das melhores tradições de nossa profissão, revelando coragem, independência e capacidade de luta, com os parcos meios de que dispúnhamos. Nunca nos abatemos. Denunciamos abertamente, com a maior veemência, a tortura em todos os casos em que efetivamente tinha ocorrido, e eram quase todos.
(…)
Lutamos todos com bravura e destemor, nunca época em que os mais fortes silenciavam. Não espanta, por isso, que nos considerassem como aliados e servidores da subversão e, assim, nós mesmos subversivos”.
Sobrevindo mais adiante, como se esperava, a Lei de Anistia, o reestabelecimento do Estado democrático de Direito, especialmente com a Constituição de 5 de outubro de 1988, os advogados prosseguiram, diuturnamente, na luta por liberdade e justiça.
Certo é, no entanto, que os desmandos, as violências e as práticas ilícitas a pretexto de punir delitos não cessaram, mudaram apenas de tom, delineando-se novo contexto. Influências alienígenas, de alguma forma, e reclamos desmedidos por justiçamento, acabaram por tornar o direito penal instrumento de perseguição, desrespeitando-se, não raro — ou mesmo frequentemente —, as garantias da nova carta política do país.
A dignidade da pessoa humana, as masmorras que são majoritariamente nossas prisões, a utilização dos meios de comunicação para execrar, estigmatizando seus alvos desde o início de investigações, tornou-se postura injustificável da autoridade policial, do Ministério Público e também de muitos magistrados, que se tornaram, lamentavelmente, combatentes do crime, verdugos, algozes, a fazer da presunção de inocência o oposto de seu enunciado.
Desnecessário dizer das operações espetaculosas, com eleição de alguns meios de informação privilegiados, que faziam o panegírico dos acusadores, referências encomiásticas aos juízes, sobretudo os que obravam como perseguidores, formando dupla com a autoridade policial ou com os promotores de Justiça. De quando em vez, a dupla se convolava em triunvirato acusatório — polícia, Ministério Público e magistrado —, todos operando por condenações bombásticas, em que a simbiose os transformava em um só, todos perseguidores, todos descompromissados com a lei e com a Constituição. Contra tudo isso, só a voz da defesa, daí a nobreza do ofício e a sua importância.
As notícias do dia a dia mostram, às escancaras, a desmoralização de investigados, pouco valendo a ulterior absolvição, eis que o espaço concedido à inocência nem de perto se aproxima ao que se tenha veiculado em desfavor do desventurado, a encontrar, aqui, ali e acolá, magistrados que desprezavam o ato de julgar, pensavam que estariam a combater o crime, agindo, sem pudor, como policiais. Mais uma vez, avulta o papel do defensor, daí porque Voltaire dizia ter inveja tão somente de não ter sido advogado. Grande honra e alta distinção, sem dúvida, é a de defender seus semelhantes.
Lamentavelmente, a dúvida tem se transformado em propensão à condenação, e não à exclusão de responsabilidade, com o que se conformam os magistrados inclinados, que largam de mão a imparcialidade, premissa de validade de qualquer julgamento.
O escritório jamais desertou dessa luta, nunca abandonou os ideais que o forjaram, em tempo algum se conformou com desvios, próprios da volúpia punitiva, com a celebração entusiasmada de algozes. A antítese se traduz em resistência, força da voz, energia dos pulmões, indignação da alma, intenso pulsar do coração, com o fito de obstacular, de modo resoluto e candente, afrontas ao Estado democrático de Direito.
Clamar pela inocência de seus constituintes, ou levantar, entre os ardores punitivos e os acusados, os ditames da lei, é compromisso de todos que integram o escritório Nelio Machado Advogados, conduta espontânea, natural, indeclinável e necessária por parte de todos, ontem, hoje e sempre.
Não cabe, por fim, dizer dos vários casos em que o escritório tenha atuado, nem mesmo os de que atualmente se ocupa, desde crimes previstos no Código Penal e leis extravagantes. A rigor, o que importa são os princípios, aqueles que os advogados do escritório obedecem, seguindo a mesma liturgia, a mesma cartilha, a deontologia da profissão, tornando perene o exemplo e a memória dos seus antecessores, pilares de sua sustentação.
Afastamento por doença causada pelo empregador não retira adicional de atividade
A 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região manteve, por unanimidade, adicional de atividade a uma carteira que teve de ser readaptada após ter sido afastada das funções de distribuição e coleta de correspondências e encomendas em vias públicas pelos Correios.
O afastamento se deu por doença profissional causada pelo esforço excessivo ao manejar, sacudir e arremessar objetos. Segundo os autos, a profissional foi removida das atividades externas em maio de 2022, inicialmente por 90 dias, mas as restrições foram mantidas após esse período.
Com isso, em janeiro de 2023, a empresa cortou o pagamento do adicional de atividade. No entanto, o TRT-2 interpretou que, ainda que a trabalhadora tenha deixado de realizar tais tarefas, não pode ter prejuízo devido a um quadro de saúde provocado pelo próprio empregador.
A magistrada Eliane Aparecida da Silva Pedroso, relatora do caso, destacou no acórdão que a conduta dos Correios é indevida, uma vez que a profissional foi vítima de doença de trabalho e não deu causa à readaptação funcional, compatível com as limitações adquiridas em decorrência de suas atividades. “Inadmissível, portanto, onerar a própria vítima, impondo-se a manutenção da verba.”A decisão se baseia no artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal, que consagra a irredutibilidade salarial, e nos artigos 187, 927 e 950 do Código Civil, que determinam o dever objetivo de reparação àqueles que causam dano. Fundamenta-se, também, em jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho envolvendo o mesmo adicional.
Com a decisão, a instituição terá que restabelecer o pagamento do adicional, desde a data da supressão, com todos os reflexos em férias, 13º salário e depósitos do FGTS. Com informações da assessoria de imprensa do TRT-2._
Há justiça imparcial quando o julgador manifesta desprezo pelas mulheres?
Na última quarta-feira, dia 17 de julho, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) acolheu pedido formulado pela OAB do Paraná e decidiu afastar do cargo o desembargador Luís Cesar de Paula Espíndola, do Tribunal de Justiça do Paraná, por reiteradas manifestações misóginas proferidas em sessões de julgamento com competência para decidir casos relacionados, entre outras matérias, ao Estatuto de Criança e Adolescente (exceto matéria infracional) e ao Direito de Família.
Na sessão de julgamento mais recente — e que ganhou repercussão nacional — a discussão dirigia-se à manutenção de medida protetiva de distanciamento proposta pelo Ministério Público em favor de uma aluna de 12 anos, que em escuta especializada realizada conforme prevista na Lei nº 13.431/2017, relatou ter sido assediada, diversas vezes, pelo seu professor. Acuada com a insistência, passou a se esconder no banheiro da escola para evitar as suas aulas. Outras colegas também teriam se constrangido com o excesso de aproximação do professor em atividades coletivas na sala de aula.
A decisão, por maioria, manteve a medida protetiva. Ficou vencido o referido relator por fundamentos que não estavam amparados em dispositivos legais pertinentes à matéria.
Em sua fala, referido desembargador minimizou expressivamente a gravidade dos fatos reportados [1], culpabilizou a vítima pelo assédio sofrido e, em tom jocoso, desmereceu a luta pela erradicação da violência de gênero. “Ego de adolescente, precisava de atenção (…) O mundo agora está muito cheio de dedos”, afirmou.
Suas manifestações não se encerraram no julgamento do caso. Em resposta à manifestação da desembargadora Ivanise Tratz Martins (que não compunha o quórum, mas que ao seu término advertiu sobre o necessário cumprimento do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), o desembargador continuou:
“Eu não poderia deixar de responder o que Vossa Excelência falou, que não tem nada a ver com o processo, um discurso feminista, desatualizado, porque se Vossa Excelência sair na rua hoje em dia, quem está assediando, quem está correndo atrás de homens são as mulheres. Essa é a realidade. As mulheres estão loucas atrás dos homens, porque são muito poucos. É só sair à noite! Eu não saio muito à noite, mas eu conheço… tenho funcionárias; tenho, sabe, contato com o mundo. Nossa, a mulherada está louca atrás de homem e louca para levar um elogio, uma piscada, uma cantada educada, porque elas é que estão cantando, elas que estão assediando, porque não tem homem. Hoje em dia os cachorrinhos estão sendo os companheiros das mulheres. Vai no parque e só tem mulher com cachorrinho, louca para encontrar um companheiro, para conversar e eventualmente para namorar. (…) lascívia, não sei o que significa isso, agora, homem e mulher normalmente, hoje em dia existem várias tribos (risos). A conduta, a atração, a mulher ser bonita e o homem também, né. É coisa dos sexos. Agora, a coisa chegou a um ponto hoje em dia que as mulheres é que estão assediando. Não sei se Vossa Excelência sabe, professores de faculdade são assediados. É ou não é? Quando saem da faculdade deixam, um monte de ‘viúvas’. As mulheres… Ah, das mulheres ninguém está correndo atrás, porque mulher está sobrando.” [2]
Sem dúvidas, o longo discurso — estereotipado e discriminatório — proferido pelo julgador afronta as diretrizes estabelecidas pela Resolução 492, aprovada pelo CNJ em 17 de março de 2023 (Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), que devem ser rigorosamente observadas por todo o sistema de justiça.
Manifestação viola tratados internacionais sobre Direitos Humanos
A obrigação de julgar a partir de uma perspectiva de gênero não é tema novo. Está presente na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher — Cedaw (1984), na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1996), entre outros diversos documentos internacionais que versam sobre direitos humanos. Tais textos reconhecem que as desigualdades, a discriminação e a violência de gênero são transversais a todas as instituições públicas e que no reconhecimento dessas desigualdades é que direitos são reconhecidos.
O Brasil já foi responsabilizado pela Corte IDH por discriminação no acesso à Justiça, por não investigar e julgar a partir da perspectiva de gênero e pela utilização de estereótipos negativos em relação à vítima, no Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil. Nos §§ 138-150, a sentença referiu a Recomendação Geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça da Cedaw para advertir que “a presença de estereótipos de gênero no sistema judicial impacta de forma grave o pleno desfrute dos direitos humanos das mulheres, uma vez que podem impedir o acesso à justiça em todas as esferas da lei e podem afetar particularmente as mulheres vítimas e sobreviventes de violência”.
Preconceitos pessoais e estereótipos de gênero, para a Corte IDH, “afetam a objetividade dos funcionários estatais encarregados de apurar as denúncias que lhes são apresentadas, influenciando sua percepção quando determinam se ocorreu ou não um ato de violência, em sua avaliação da credibilidade das testemunhas e da própria vítima”.
Para além de destacar a violação de compromissos internacionais ratificados pelo Brasil e de normas de direito interno com força vinculante, os reiterados episódios que envolvem tanto a vida particular quanto profissional do desembargador (indicados na decisão proferida pelo CNJ na Reclamação Disciplinar 0003915-47.2024.2.00.0000) e que evidenciam pré-julgamentos e desprezo pelas mulheres invocam outra discussão: há julgamento imparcial quando o julgador manifesta desprezo contra mulheres?
Imparcialidade nos processos sob perspectiva de gênero
A imparcialidade constitui fundamento primeiro para o exercício de uma jurisdição democrática. Não é ele um elemento uniforme, imanente a qualquer organização judicial, mas um predicado que precisa ser construído, para o qual operam os específicos valores constitucionais de cada país.
Na lição de Julio Maier, “não se compreende a palavra ‘juiz’, ao menos no sentido moderno, sem o qualificativo de imparcial”. Isto porque sua origem etimológica — in-partial — refere-se àquele que não é parte em um assunto que deve julgar e, no conceito semântico, “atribui-se a quem não detém ‘pré-juízos’ positivos ou negativos em relação à pessoa ou matéria sobre a qual deve decidir”. [3]
Em relação a esses “pré-juízos”, ao menos juridicamente, não há ferramentas para acessar o inconsciente e aferir valores morais ou aspectos culturais que possam influenciar uma decisão. Por isso, essa compreensão de imparcialidade deve estar relacionada com uma obrigação de que o julgador, que em sua vida particular (lamentavelmente) seja racista, homofóbico ou misógino, não ceda à tentação de decidir conforme a sua consciência. Ele deve se submeter à Constituição, porque é por meio dela que os destinatários da atividade jurisdicional estarão protegidos desses estímulos particulares — conscientes ou não.
A criação de mecanismos de monitoramento e avaliação de padrões de parcialidade nas decisões judiciais (até porque a crença na neutralidade judicial é ingênua), assim como a implementação de programas de capacitação contínua para magistrados, focados em igualdade de gênero e direitos humanos, podem colaborar para a redução do número de decisões enviesadas no Brasil.
Contudo, quando esse preconceito é explicitamente identificado, algo imediato deve ser feito.
O pré-julgamento ou posturas ideologicamente matizadas indicam evidente inclinação subjetiva sobre o conteúdo de futuras decisões e caracteriza parcialidade para julgar interesses ou direitos, no caso do machismo, de mulheres.
Pergunta-se: seria possível garantir confiabilidade ou democraticidade em decisões proferidas por um julgador cuja incontinência verbal e linguagem incendiária o coloca na posição de inimigo de mulheres? A resposta, decerto, que não.
O machismo tem um impacto significativo na imparcialidade dos magistrados. Por isso, quando a força vinculante do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero não é suficiente a impor-lhe limites, essa parcialidade deve ser declarada pelas instâncias de controle e atacada com uma adequada resposta administrativa, para proteger as jurisdicionadas e a própria credibilidade no Poder Judiciário.
O exemplo trazido, que apenas ganhou destaque por não se tratar de caso que tramita em segredo de justiça, certamente não será o último. É necessário dar amplitude a situações como essa para que não se repitam (ou não com a mesma intensidade). A confiança no sistema jurisdicional depende da responsabilidade dos magistrados no cumprimento de seus deveres.
Se é machista, não é imparcial e não é justiça.
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[1] Não se pretende interferir na forma independente como deve o magistrado interpretar o conjunto probatório, mas rechaçar a indevida naturalização do assédio sexual, o que reforça um processo de revitimização de mulheres e meninas que sofrem violência de gênero. As autoras compreendem que há dois caminhos a serem trilhados pelas vítimas: aquele que visa a expansão do poder punitivo e aquele que busca expandir o poder de compreensão (ARGUELLO, Katie Silene Cáceres et at. Vitimologia e Gênero: considerações crítico-feministas a partir da sentença do Caso Mariana Ferrer. In: Captura críptica. Florianópolis, v.12, n.2, 2023, p. 259-292). O caminho proposto é aquele de mais direitos, garantias, engajado em uma política criminal da criminologia crítica orientada à maior participação da vítima no processo, menor intervenção punitiva e focada na justiça restaurativa.
[2] Sessão originalmente disponível no link: https://www.youtube.com/live/cQMtllvULBs. Após repercussão, o conteúdo foi removido pelo TJPR.
[3] MAIER, Julio B.J. Derecho Procesal Penal. Tomo I: Fundamentos. 2ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, p. 739._
STJ concedeu 996 Habeas Corpus para aplicar jurisprudência de tráfico privilegiado em 2024
De 1º de janeiro a 22 de julho de 2024, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem em Habeas Corpus e recursos em HC 996 vezes apenas para aplicar jurisprudência pacífica em casos envolvendo o redutor de pena conhecido como tráfico privilegiado.
Os dados foram compilados pelo advogado David Metzker e indicam o tamanho da renitência das instâncias ordinárias em obedecer posições firmadas pelo tribunal responsável por uniformizar a interpretação da lei federal.
O redutor de pena do tráfico privilegiado é previsto no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas e se destina ao caso do traficante de primeira viagem, que é primário, de bons antecedentes e que ainda não se encontra inserido na criminalidade.
Sua aplicação reduz a pena mínima, que seria de quatro anos, para até um ano e oito meses — a redução pode ser menor, a depender do caso. Como já mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, ele é fonte de grande embate nos tribunais.
Os dados mostram que, ao todo, o tema do tráfico privilegiado gerou a concessão de ordem em 1.223 casos. Em 996 deles, a aplicação do redutor foi recusada pelos tribunais estaduais com base em três fatores:
— Quantidade de drogas;
— O réu ter contra si outras ações penais ou inquéritos em andamento;
— O réu ter no histórico ato infracional análogo ao tráfico de drogas.
Nenhum desses motivos justifica o afastamento do redutor de pena, tampouco comprova que o réu se dedica a atividades criminosas ou integra organização criminosa, conforme a interpretação do STJ.
Em suma, 81,4% dos HCs e RHCs concedidos em 2024 para aplicação do tráfico privilegiado tratam de temas pacificados na jurisprudência do STJ.
Sempre ele
Os dados mostram que a corte estadual que mais desrespeita os precedentes do STJ é a de São Paulo. Dos 1.223 HCs e RHCs concedidos sobre tráfico privilegiado, 733 viram do Tribunal de Justiça paulista (59,9%). O segundo colocado nesse ranking é o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com um décimo do número (73).
A renitência é tamanha que gerou mais um embate público com o STJ. Isso ocorreu no HC 913.210, em que o desembargador convocado Jesuíno Rissato advertiu o TJ-SP de que precedentes qualificados e a jurisprudência do STJ estavam sendo descumpridos.
A resposta foi uma nota assinada pelo presidente da Seção Criminal do TJ Paulista, desembargador Camargo Aranha Filho, que criticou a “lógica do tudo ou nada” na formação do sistema de precedentes brasileiro.
O caso concreto trata de um réu que teve o redutor de pena negado porque respondia a outra ação por tráfico e devido à elevada quantidade de drogas que trazia consigo.
O STJ tem tese vinculante, no Tema 1.139, que veda a utilização de inquéritos e/ou ações penais em curso para impedir a aplicação do redutor de pena.
A corte tem posição firme no sentido de que a quantidade de drogas apreendida só serve para modular a fração de redução da pena na terceira fase da dosimetria, desde que não tenha sido considerada para aumentar a pena-base.
Ato infracional
O levantamento de Metzker mostra que a questão da quantidade de drogas, isoladamente, foi a que mais gerou concessão de ordem para reduzir a pena do réu: 672 vezes. Já os casos em que o réu tinha ação penal ou inquérito policial em andamento foram 192.
O terceiro motivo, com 54 casos, foi o fato de o réu ter praticado ato infracional análogo ao tráfico de drogas quando era adolescente. Tribunais e juízes consideram um indicativo de que ele se dedica a atividades criminosas.
Nesse ponto, a jurisprudência passou por alterações. Desde 2021, a 3ª Seção do STJ entende que o registro de atos infracionais pode afastar a aplicação do tráfico privilegiado, quando os fatos sejam graves, bem documentados e não afastados no tempo.
Um exemplo citado foi o caso de um réu primário que tinha 71 infrações enquanto menor de idade. Ministros apontam a necessidade de avaliar, caso a caso, para ver se há ou não dedicação a atividades criminosa.
A concessão de ordem em 54 casos indica que as cortes não fizeram essa análise de forma adequada.
51 HCs por dia
Os casos de tráfico privilegiado fazem parte de um universo maior e crescente do uso de Habeas Corpus, que há tempos gera preocupação no STJ.
De janeiro a 22 de julho, o tribunal concedeu a ordem 10.598 vezes — a média diária é de 51,9 concessões, o que indica um crescimento de 19,3% em relação a 2023, quando o STJ concedeu 43,5 HCs e RHCs por dia.
Mais da metade é sobre tráfico de drogas: foram 5.521, que correspondem a 52% do total. Desses, 5.451 (98,7%) foram decididos de maneira monocrática, o que indica que houve aplicação de posições pacificadas.
Já dados do tribunal mostram que, até junho, foram registrados 44.587 Habeas Corpus e 8.402 e recursos em HC. A presidente da corte, ministra Maria Thereza de Assis, mostrou preocupação com os números no encerramento do semestre forense.
Não há perspectiva de melhora imediata. A decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu balizas para diferenciar tráfico e porte de maconha, por exemplo, deve gerar uma nova onda de HCs no STJ. Ministros da casa já se preparam para aplicar a decisão._