Mentir em processo de guarda justifica multa por litigância de má-fé, decide TJ-SP
Um casal de Pirassununga (SP) foi multado em R$ 400 por litigância de má-fé pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo por mentir ao processar a mãe de sua neta para requerer a guarda da criança.
Com uma procuração assinada pelo pai da menor, que é filho do casal de autores, e alegando abandono da criança por parte da genitora, os dois chegaram a obter a guarda provisória. No entanto, o pai da criança sofre de transtorno bipolar e afirmou que assinou a procuração sem saber que o objetivo dos avós era retirar a guarda da mãe.
Alteração da verdade dos fatos
Para o desembargador Vitor Frederico Kumpel, relator do caso, os avós “alteraram a verdade dos fatos” para fazer com que o juízo de Pirassununga, onde tramitou a ação em primeira instância, acreditasse que o pai da menina concordava com os pedidos iniciais, que foram atendidos a princípio.
O genitor se apresentou nos autos, negou o consentimento para que eles ingressassem com a ação e defendeu a manutenção da guarda da filha com a genitora.
“Incontroverso que o genitor não concordava com o pleito inicial, tanto é que se apresentou nos autos e contestou o feito negando os fatos narrados pelos autores. Evidente a alteração da verdade dos fatos pelos demandantes, cujos argumentos são contraditórios”, pontuou o relator.
Os desembargadores também reformaram a sentença de primeira instância para fixar os honorários de sucumbência com base na tabela da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).
Atuou na causa em favor da mãe da criança o advogado Eduardo Schiavoni. “A Justiça não é terra de ninguém. Existe a responsabilidade da boa-fé processual e ludibriar o pai da criança atinge de morte esse princípio”, diz ele.
Blackbox e manipulação de sistemas de IA na prática forense
São cada vez mais intensas e controversas as discussões de como a inteligência artificial (IA) tem se tornado uma ferramenta essencial na prática forense, facilitando a resolução de crimes e a análise de evidências (Russell; Norvig, 2016). No entanto, surgem preocupações éticas e de segurança quando se tenta contornar os “filtros” internos de sistemas de IA, como o ChatGPT, para obter informações de forma ilegal. Este Op-Ed examina brevemente os riscos ocultos dessas práticas e como a opacidade dos modelos de “caixa preta” pode minar a confiança nas análises forenses.
As discussões sobre a utilização de modelos de IA já estão focadas na produção de decisões judiciais em matéria penal, ou seja, no debate sobre as (im)possibilidades de modelos de apoio à decisão penal. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou as Resoluções 332/2020 e 363/2021 e a Portaria 271/2020, regulamentando a pesquisa, o desenvolvimento e a implementação de Modelos nos Tribunais (Peixoto, 2020). No entanto, muitas iniciativas acontecem “fora do radar”, sem um mínimo de maturidade tecnológica, no “oba-oba” da aparente facilidade da inteligência artificial generativa.
Embora não proibida no domínio penal, a IA “não deve ser estimulada, sobretudo com relação à sugestão de modelos de decisões preditivas” (Resolução 332/2020, artigo 23). Confira a publicação sobre “O Manto de Invisibilidade do uso da Inteligência Artificial no Processo Penal” ler (aqui) pois, este artigo já chamava a atenção para a complexidade do tema e para a questão relevante e pouco problematizada do “uso” de prova adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle, em desconformidade com as normas de transparência, produção, tratamento de dados e auditabilidade algorítmica.
Filtros
Os filtros internos são cruciais para impedir o uso mal-intencionado da IA protegendo a integridade dos dados e garantindo conformidade com normas legais e éticas (Floridi; Cowls, 2019). Esses filtros atuam como barreiras, evitando que informações sensíveis ou ilegais sejam acessadas ou manipuladas. A transparência desses filtros é essencial para manter a confiabilidade e a legitimidade das ferramentas de IA na prática forense (Goodman; Flaxman, 2017).
Qualquer uso de IA em contextos forenses deve respeitar as regras do jogo para evitar abusos e garantir a integridade das provas. No entanto, oportunistas operam sob o manto aparente da invisibilidade, mas deixam pegadas digitais que podem ser identificadas. Basta saber pedir as informações de acesso [logs, p.ex.].
Onde está o problema? Os modelos de “caixa preta” são frequentemente criticados pela falta de explicabilidade e transparência. Na prática forense tanto clareza quanto precisão são indispensáveis, razão pela qual a utilização desses modelos pode ser problemática (Doshi-Velez; Kim, 2017).
A incapacidade de explicar como um modelo de IA chegou a uma determinada conclusão compromete a integridade das análises forenses e a confiança pública nos resultados apresentados em tribunal (Lipton, 2018). Além disso, a utilização de modelos de IA por órgãos estatais sem a devida conformidade com normas de transparência e auditabilidade algorítmica impõe um sério risco à concretização de direitos fundamentais e ao devido processo legal.
A ausência de controle efetivo sobre a aquisição e o processamento de dados materializados em provas judiciais pode “legitimar” comportamentos oportunistas e abusivos, criando um “Manto da Invisibilidade” (Bierrenbach, 2021).
Contornar os filtros internos de sistemas de IA não só compromete a segurança, mas também a legalidade das operações forenses. Vamos além…a manipulação desses filtros pode levar a falhas graves na análise de evidências, prejudicando investigações e julgamentos. Além disso, tais práticas podem resultar em sanções legais severas e minar a confiança na aplicação da lei e na justiça (Mittelstadt et al., 2016).
A questão do “uso de prova”, por exemplo, já dito anteriormente, adquirida por “Modelos de Inteligência Artificial” implementados pelos Órgãos de Investigação e de Controle em desconformidade com a normativa do CNJ e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ilustra bem os perigos envolvidos. O paradoxo se estabelece quando práticas vedadas internamente são aceitas externamente, criando um dualismo incoerente.
Em face do exposto, manter filtros robustos e transparentes nos sistemas de IA é essencial para proteger contra o uso ilegal e antiético dessas tecnologias na prática forense. A confiança nas análises forenses depende de um equilíbrio (…) de práticas éticas e de segurança no desenvolvimento de IA. Qual é o desafio?
O desafio é desenvolver IA que seja ao mesmo tempo poderosa e transparente, promovendo uma prática forense que respeite tanto a precisão quanto a ética (Rudin, 2019). Ao que tudo indica, a utilização responsável da IA alinha-se melhor com a proteção dos direitos fundamentais e o Devido Processo Legal._
Colegiado de juízes pronuncia trio pela morte de líder quilombola
Três homens acusados de envolvimento na execução de uma religiosa e líder quilombola na Bahia serão submetidos a júri popular. A decisão é de um colegiado composto por dois juízes e uma magistrada. Para não prejudicar o curso da ação quanto a esses réus, houve o desmembramento do processo em relação a mais dois denunciados — um foragido e o outro capturado na terça-feira (23/7) —, porque não constituíram advogado.
Instalado por ato da Corregedoria do Tribunal de Justiça da Bahia, após a repercussão nacional do caso, o colegiado está vinculado à 1ª Vara Criminal e do Júri de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador. Na decisão de pronúncia, os juízes consideraram a materialidade do crime, comprovada pelo exame de corpo de delito, e verificaram a existência de “indícios relevantes de autoria”, devido às provas técnicas e testemunhais.
Representante do quilombo Caipora, a ialorixá Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, de 72 anos, foi morta com 25 tiros em sua casa, na comunidade de Pitanga dos Palmares, na noite de 17 de agosto de 2023. Dois homens invadiram a moradia e, antes de dispararem contra a vítima, ordenaram que três netos dela fossem até um quarto. Um dos atiradores ainda levou cinco celulares que havia no imóvel.
Crimes conexos e qualificadoras
Na decisão que pronunciou os réus, o colegiado de magistrados manteve os cinco crimes conexos de roubo dos aparelhos de telefonia imputados a um dos acusados, “em respeito à absoluta competência do tribunal popular”, e as quatro qualificadoras atribuídas ao homicídio: motivo torpe, emprego de meio insidioso ou cruel, recurso que tornou impossível a defesa da vítima e uso de arma de fogo de uso restrito ou proibido.
Diante dos indícios que constam nos autos, conforme os julgadores, não há como afastar as qualificadoras, porque eventual exclusão só seria possível se elas fossem manifestamente improcedentes e de todo descabidas. O colegiado também ratificou a prisão preventiva dos cinco denunciados. “Não obstante a repercussão nacional do caso concreto, destaca-se também a premeditação com que agiram os réus”, escreveram eles.
Segundo a decisão, “a ação foi arquitetada entre os supostos autores na condição de membros de organização criminosa”. As investigações apuraram que Mãe Bernardete era figura reconhecida pela luta referente ao assentamento, reconhecimento do quilombo como tal e pelo combate à exploração ilegal de madeira e à prática de tráfico de drogas. A resistência da vítima à expansão do comércio de entorpecentes motivou a sua morte._
Juiz pode impor honorários por condenação condicionada a evento futuro, decide STJ
Mesmo que a condenação do réu seja de uma obrigação de fazer condicionada a algum evento futuro, é possível que ele seja obrigado a pagar honorários de sucumbência antes de essa condição ser cumprida.
Essa conclusão é da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que negou provimento ao recurso especial de uma operadora de plano de saúde que discutia a base de cálculo dos honorários a serem pagos após ser derrotada na ação.
O caso é o de um beneficiário que precisou de cirurgia para instalação de stents — pequenos tubos usados para abrir vasos sanguíneos que tenham fluxo sanguíneo bloqueado. A operadora negou a cobertura.
Como o procedimento era de urgência, a filha do beneficiário fez o pagamento em cheques para que fosse feita a cirurgia. Na ação, ela pediu a condenação da operadora a arcar com os custos do tratamento e indenização por danos morais.
O pedido foi julgado procedente. A empresa foi condenada a pagar R$ 10 mil por danos morais e a cobrir os cheques caso esse débito viesse a ser cobrado da filha do beneficiário.
No entanto, ficou a dúvida se esse trecho da sentença deveria ser incluído no cálculo dos honorários de sucumbência, mesmo que a cobrança não tenha sido feita. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso entendeu que sim.
Pode cobrar
Relator da matéria no STJ, o ministro Antonio Carlos Ferreira observou que a solução para a dúvida está na análise do dispositivo do acórdão que condenou a operadora de plano de saúde ao pagamento dos honorários.
“A condenação envolve as duas verbas, tanto a da responsabilidade pelo débito hospitalar quanto a do pagamento dos danos morais. Embora a primeira tenha sido condicionada em relação ao autor da demanda, não o foi em relação aos honorários advocatícios.”
“(A empresa) Somente deve pagar o débito hospitalar se o autor for obrigado a efetuar tal pagamento, mas, em relação aos honorários advocatícios, a verba compõe a base de cálculo, segundo o que ficou definido no título executivo”, concluiu o relator._
O escritório Nelio Machado Advogados, natural continuidade daquele que o precedeu, Escritório de Advocacia Lino Machado, assim considerados ambos, tem existência que corresponde, na verdade, a 75 anos. Atuação marcada sobretudo em causas penais, inclusive ao tempo em que o país se defrontou com o regime de exceção, em face do golpe de 1964.
Suprimiu-se, naquele tempo, a garantia do Habeas Corpus. As prisões, sem forma e figura de juízo, aconteciam em toda parte, a toda hora, em todos os rincões do país. Foram poucos os defensores que se dedicaram a falar em nome dos destinatários das violências e torpezas do regime que se instaurou. A tortura era comum, ao lado de desaparecimentos e sequestros, sem que se tivesse a devida proteção dos tribunais, tolhidos para deliberar contra atos institucionais, cassações de mandatos e outros desmandos do poder.
Não foram poucos os seviciados, muitos os mortos, outros tantos desaparecidos. A despeito disso, registrando mérito sobretudo dos advogados que precederam a atual formação do escritório, há de se colocar a figura maiúscula e exemplar de Lino Machado, em sua luta intimorata para proteger os alvos do estado de exceção.
O professor Heleno Fragoso, em seu livro A Advocacia da Liberdade [1], escreveu para a história, revelando como era a atuação dos defensores de presos políticos, a frustração, o empenho, a coragem:
“Depois que os presos se recuperavam das torturas e depois que haviam feito confissões completas e minuciosas, as autoridades comunicavam a prisão, indicando falsamente a data em que fora realizada.
É fácil avaliar a frustração e o sentimento de impotência que se abatia sobre nós. Quero, porém, dizer que os advogados brasileiros que atuaram nesse período foram dignos das melhores tradições de nossa profissão, revelando coragem, independência e capacidade de luta, com os parcos meios de que dispúnhamos. Nunca nos abatemos. Denunciamos abertamente, com a maior veemência, a tortura em todos os casos em que efetivamente tinha ocorrido, e eram quase todos.
(…)
Lutamos todos com bravura e destemor, nunca época em que os mais fortes silenciavam. Não espanta, por isso, que nos considerassem como aliados e servidores da subversão e, assim, nós mesmos subversivos”.
Sobrevindo mais adiante, como se esperava, a Lei de Anistia, o reestabelecimento do Estado democrático de Direito, especialmente com a Constituição de 5 de outubro de 1988, os advogados prosseguiram, diuturnamente, na luta por liberdade e justiça.
Certo é, no entanto, que os desmandos, as violências e as práticas ilícitas a pretexto de punir delitos não cessaram, mudaram apenas de tom, delineando-se novo contexto. Influências alienígenas, de alguma forma, e reclamos desmedidos por justiçamento, acabaram por tornar o direito penal instrumento de perseguição, desrespeitando-se, não raro — ou mesmo frequentemente —, as garantias da nova carta política do país.
A dignidade da pessoa humana, as masmorras que são majoritariamente nossas prisões, a utilização dos meios de comunicação para execrar, estigmatizando seus alvos desde o início de investigações, tornou-se postura injustificável da autoridade policial, do Ministério Público e também de muitos magistrados, que se tornaram, lamentavelmente, combatentes do crime, verdugos, algozes, a fazer da presunção de inocência o oposto de seu enunciado.
Desnecessário dizer das operações espetaculosas, com eleição de alguns meios de informação privilegiados, que faziam o panegírico dos acusadores, referências encomiásticas aos juízes, sobretudo os que obravam como perseguidores, formando dupla com a autoridade policial ou com os promotores de Justiça. De quando em vez, a dupla se convolava em triunvirato acusatório — polícia, Ministério Público e magistrado —, todos operando por condenações bombásticas, em que a simbiose os transformava em um só, todos perseguidores, todos descompromissados com a lei e com a Constituição. Contra tudo isso, só a voz da defesa, daí a nobreza do ofício e a sua importância.
As notícias do dia a dia mostram, às escancaras, a desmoralização de investigados, pouco valendo a ulterior absolvição, eis que o espaço concedido à inocência nem de perto se aproxima ao que se tenha veiculado em desfavor do desventurado, a encontrar, aqui, ali e acolá, magistrados que desprezavam o ato de julgar, pensavam que estariam a combater o crime, agindo, sem pudor, como policiais. Mais uma vez, avulta o papel do defensor, daí porque Voltaire dizia ter inveja tão somente de não ter sido advogado. Grande honra e alta distinção, sem dúvida, é a de defender seus semelhantes.
Lamentavelmente, a dúvida tem se transformado em propensão à condenação, e não à exclusão de responsabilidade, com o que se conformam os magistrados inclinados, que largam de mão a imparcialidade, premissa de validade de qualquer julgamento.
O escritório jamais desertou dessa luta, nunca abandonou os ideais que o forjaram, em tempo algum se conformou com desvios, próprios da volúpia punitiva, com a celebração entusiasmada de algozes. A antítese se traduz em resistência, força da voz, energia dos pulmões, indignação da alma, intenso pulsar do coração, com o fito de obstacular, de modo resoluto e candente, afrontas ao Estado democrático de Direito.
Clamar pela inocência de seus constituintes, ou levantar, entre os ardores punitivos e os acusados, os ditames da lei, é compromisso de todos que integram o escritório Nelio Machado Advogados, conduta espontânea, natural, indeclinável e necessária por parte de todos, ontem, hoje e sempre.
Não cabe, por fim, dizer dos vários casos em que o escritório tenha atuado, nem mesmo os de que atualmente se ocupa, desde crimes previstos no Código Penal e leis extravagantes. A rigor, o que importa são os princípios, aqueles que os advogados do escritório obedecem, seguindo a mesma liturgia, a mesma cartilha, a deontologia da profissão, tornando perene o exemplo e a memória dos seus antecessores, pilares de sua sustentação.
Afastamento por doença causada pelo empregador não retira adicional de atividade
A 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região manteve, por unanimidade, adicional de atividade a uma carteira que teve de ser readaptada após ter sido afastada das funções de distribuição e coleta de correspondências e encomendas em vias públicas pelos Correios.
O afastamento se deu por doença profissional causada pelo esforço excessivo ao manejar, sacudir e arremessar objetos. Segundo os autos, a profissional foi removida das atividades externas em maio de 2022, inicialmente por 90 dias, mas as restrições foram mantidas após esse período.
Com isso, em janeiro de 2023, a empresa cortou o pagamento do adicional de atividade. No entanto, o TRT-2 interpretou que, ainda que a trabalhadora tenha deixado de realizar tais tarefas, não pode ter prejuízo devido a um quadro de saúde provocado pelo próprio empregador.
A magistrada Eliane Aparecida da Silva Pedroso, relatora do caso, destacou no acórdão que a conduta dos Correios é indevida, uma vez que a profissional foi vítima de doença de trabalho e não deu causa à readaptação funcional, compatível com as limitações adquiridas em decorrência de suas atividades. “Inadmissível, portanto, onerar a própria vítima, impondo-se a manutenção da verba.”A decisão se baseia no artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal, que consagra a irredutibilidade salarial, e nos artigos 187, 927 e 950 do Código Civil, que determinam o dever objetivo de reparação àqueles que causam dano. Fundamenta-se, também, em jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho envolvendo o mesmo adicional.
Com a decisão, a instituição terá que restabelecer o pagamento do adicional, desde a data da supressão, com todos os reflexos em férias, 13º salário e depósitos do FGTS. Com informações da assessoria de imprensa do TRT-2._
Há justiça imparcial quando o julgador manifesta desprezo pelas mulheres?
Na última quarta-feira, dia 17 de julho, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) acolheu pedido formulado pela OAB do Paraná e decidiu afastar do cargo o desembargador Luís Cesar de Paula Espíndola, do Tribunal de Justiça do Paraná, por reiteradas manifestações misóginas proferidas em sessões de julgamento com competência para decidir casos relacionados, entre outras matérias, ao Estatuto de Criança e Adolescente (exceto matéria infracional) e ao Direito de Família.
Na sessão de julgamento mais recente — e que ganhou repercussão nacional — a discussão dirigia-se à manutenção de medida protetiva de distanciamento proposta pelo Ministério Público em favor de uma aluna de 12 anos, que em escuta especializada realizada conforme prevista na Lei nº 13.431/2017, relatou ter sido assediada, diversas vezes, pelo seu professor. Acuada com a insistência, passou a se esconder no banheiro da escola para evitar as suas aulas. Outras colegas também teriam se constrangido com o excesso de aproximação do professor em atividades coletivas na sala de aula.
A decisão, por maioria, manteve a medida protetiva. Ficou vencido o referido relator por fundamentos que não estavam amparados em dispositivos legais pertinentes à matéria.
Em sua fala, referido desembargador minimizou expressivamente a gravidade dos fatos reportados [1], culpabilizou a vítima pelo assédio sofrido e, em tom jocoso, desmereceu a luta pela erradicação da violência de gênero. “Ego de adolescente, precisava de atenção (…) O mundo agora está muito cheio de dedos”, afirmou.
Suas manifestações não se encerraram no julgamento do caso. Em resposta à manifestação da desembargadora Ivanise Tratz Martins (que não compunha o quórum, mas que ao seu término advertiu sobre o necessário cumprimento do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), o desembargador continuou:
“Eu não poderia deixar de responder o que Vossa Excelência falou, que não tem nada a ver com o processo, um discurso feminista, desatualizado, porque se Vossa Excelência sair na rua hoje em dia, quem está assediando, quem está correndo atrás de homens são as mulheres. Essa é a realidade. As mulheres estão loucas atrás dos homens, porque são muito poucos. É só sair à noite! Eu não saio muito à noite, mas eu conheço… tenho funcionárias; tenho, sabe, contato com o mundo. Nossa, a mulherada está louca atrás de homem e louca para levar um elogio, uma piscada, uma cantada educada, porque elas é que estão cantando, elas que estão assediando, porque não tem homem. Hoje em dia os cachorrinhos estão sendo os companheiros das mulheres. Vai no parque e só tem mulher com cachorrinho, louca para encontrar um companheiro, para conversar e eventualmente para namorar. (…) lascívia, não sei o que significa isso, agora, homem e mulher normalmente, hoje em dia existem várias tribos (risos). A conduta, a atração, a mulher ser bonita e o homem também, né. É coisa dos sexos. Agora, a coisa chegou a um ponto hoje em dia que as mulheres é que estão assediando. Não sei se Vossa Excelência sabe, professores de faculdade são assediados. É ou não é? Quando saem da faculdade deixam, um monte de ‘viúvas’. As mulheres… Ah, das mulheres ninguém está correndo atrás, porque mulher está sobrando.” [2]
Sem dúvidas, o longo discurso — estereotipado e discriminatório — proferido pelo julgador afronta as diretrizes estabelecidas pela Resolução 492, aprovada pelo CNJ em 17 de março de 2023 (Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero), que devem ser rigorosamente observadas por todo o sistema de justiça.
Manifestação viola tratados internacionais sobre Direitos Humanos
A obrigação de julgar a partir de uma perspectiva de gênero não é tema novo. Está presente na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher — Cedaw (1984), na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1996), entre outros diversos documentos internacionais que versam sobre direitos humanos. Tais textos reconhecem que as desigualdades, a discriminação e a violência de gênero são transversais a todas as instituições públicas e que no reconhecimento dessas desigualdades é que direitos são reconhecidos.
O Brasil já foi responsabilizado pela Corte IDH por discriminação no acesso à Justiça, por não investigar e julgar a partir da perspectiva de gênero e pela utilização de estereótipos negativos em relação à vítima, no Caso Márcia Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil. Nos §§ 138-150, a sentença referiu a Recomendação Geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça da Cedaw para advertir que “a presença de estereótipos de gênero no sistema judicial impacta de forma grave o pleno desfrute dos direitos humanos das mulheres, uma vez que podem impedir o acesso à justiça em todas as esferas da lei e podem afetar particularmente as mulheres vítimas e sobreviventes de violência”.
Preconceitos pessoais e estereótipos de gênero, para a Corte IDH, “afetam a objetividade dos funcionários estatais encarregados de apurar as denúncias que lhes são apresentadas, influenciando sua percepção quando determinam se ocorreu ou não um ato de violência, em sua avaliação da credibilidade das testemunhas e da própria vítima”.
Para além de destacar a violação de compromissos internacionais ratificados pelo Brasil e de normas de direito interno com força vinculante, os reiterados episódios que envolvem tanto a vida particular quanto profissional do desembargador (indicados na decisão proferida pelo CNJ na Reclamação Disciplinar 0003915-47.2024.2.00.0000) e que evidenciam pré-julgamentos e desprezo pelas mulheres invocam outra discussão: há julgamento imparcial quando o julgador manifesta desprezo contra mulheres?
Imparcialidade nos processos sob perspectiva de gênero
A imparcialidade constitui fundamento primeiro para o exercício de uma jurisdição democrática. Não é ele um elemento uniforme, imanente a qualquer organização judicial, mas um predicado que precisa ser construído, para o qual operam os específicos valores constitucionais de cada país.
Na lição de Julio Maier, “não se compreende a palavra ‘juiz’, ao menos no sentido moderno, sem o qualificativo de imparcial”. Isto porque sua origem etimológica — in-partial — refere-se àquele que não é parte em um assunto que deve julgar e, no conceito semântico, “atribui-se a quem não detém ‘pré-juízos’ positivos ou negativos em relação à pessoa ou matéria sobre a qual deve decidir”. [3]
Em relação a esses “pré-juízos”, ao menos juridicamente, não há ferramentas para acessar o inconsciente e aferir valores morais ou aspectos culturais que possam influenciar uma decisão. Por isso, essa compreensão de imparcialidade deve estar relacionada com uma obrigação de que o julgador, que em sua vida particular (lamentavelmente) seja racista, homofóbico ou misógino, não ceda à tentação de decidir conforme a sua consciência. Ele deve se submeter à Constituição, porque é por meio dela que os destinatários da atividade jurisdicional estarão protegidos desses estímulos particulares — conscientes ou não.
A criação de mecanismos de monitoramento e avaliação de padrões de parcialidade nas decisões judiciais (até porque a crença na neutralidade judicial é ingênua), assim como a implementação de programas de capacitação contínua para magistrados, focados em igualdade de gênero e direitos humanos, podem colaborar para a redução do número de decisões enviesadas no Brasil.
Contudo, quando esse preconceito é explicitamente identificado, algo imediato deve ser feito.
O pré-julgamento ou posturas ideologicamente matizadas indicam evidente inclinação subjetiva sobre o conteúdo de futuras decisões e caracteriza parcialidade para julgar interesses ou direitos, no caso do machismo, de mulheres.
Pergunta-se: seria possível garantir confiabilidade ou democraticidade em decisões proferidas por um julgador cuja incontinência verbal e linguagem incendiária o coloca na posição de inimigo de mulheres? A resposta, decerto, que não.
O machismo tem um impacto significativo na imparcialidade dos magistrados. Por isso, quando a força vinculante do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero não é suficiente a impor-lhe limites, essa parcialidade deve ser declarada pelas instâncias de controle e atacada com uma adequada resposta administrativa, para proteger as jurisdicionadas e a própria credibilidade no Poder Judiciário.
O exemplo trazido, que apenas ganhou destaque por não se tratar de caso que tramita em segredo de justiça, certamente não será o último. É necessário dar amplitude a situações como essa para que não se repitam (ou não com a mesma intensidade). A confiança no sistema jurisdicional depende da responsabilidade dos magistrados no cumprimento de seus deveres.
Se é machista, não é imparcial e não é justiça.
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[1] Não se pretende interferir na forma independente como deve o magistrado interpretar o conjunto probatório, mas rechaçar a indevida naturalização do assédio sexual, o que reforça um processo de revitimização de mulheres e meninas que sofrem violência de gênero. As autoras compreendem que há dois caminhos a serem trilhados pelas vítimas: aquele que visa a expansão do poder punitivo e aquele que busca expandir o poder de compreensão (ARGUELLO, Katie Silene Cáceres et at. Vitimologia e Gênero: considerações crítico-feministas a partir da sentença do Caso Mariana Ferrer. In: Captura críptica. Florianópolis, v.12, n.2, 2023, p. 259-292). O caminho proposto é aquele de mais direitos, garantias, engajado em uma política criminal da criminologia crítica orientada à maior participação da vítima no processo, menor intervenção punitiva e focada na justiça restaurativa.
[2] Sessão originalmente disponível no link: https://www.youtube.com/live/cQMtllvULBs. Após repercussão, o conteúdo foi removido pelo TJPR.
[3] MAIER, Julio B.J. Derecho Procesal Penal. Tomo I: Fundamentos. 2ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, p. 739._
STJ concedeu 996 Habeas Corpus para aplicar jurisprudência de tráfico privilegiado em 2024
De 1º de janeiro a 22 de julho de 2024, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem em Habeas Corpus e recursos em HC 996 vezes apenas para aplicar jurisprudência pacífica em casos envolvendo o redutor de pena conhecido como tráfico privilegiado.
Os dados foram compilados pelo advogado David Metzker e indicam o tamanho da renitência das instâncias ordinárias em obedecer posições firmadas pelo tribunal responsável por uniformizar a interpretação da lei federal.
O redutor de pena do tráfico privilegiado é previsto no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas e se destina ao caso do traficante de primeira viagem, que é primário, de bons antecedentes e que ainda não se encontra inserido na criminalidade.
Sua aplicação reduz a pena mínima, que seria de quatro anos, para até um ano e oito meses — a redução pode ser menor, a depender do caso. Como já mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, ele é fonte de grande embate nos tribunais.
Os dados mostram que, ao todo, o tema do tráfico privilegiado gerou a concessão de ordem em 1.223 casos. Em 996 deles, a aplicação do redutor foi recusada pelos tribunais estaduais com base em três fatores:
— Quantidade de drogas;
— O réu ter contra si outras ações penais ou inquéritos em andamento;
— O réu ter no histórico ato infracional análogo ao tráfico de drogas.
Nenhum desses motivos justifica o afastamento do redutor de pena, tampouco comprova que o réu se dedica a atividades criminosas ou integra organização criminosa, conforme a interpretação do STJ.
Em suma, 81,4% dos HCs e RHCs concedidos em 2024 para aplicação do tráfico privilegiado tratam de temas pacificados na jurisprudência do STJ.
Sempre ele
Os dados mostram que a corte estadual que mais desrespeita os precedentes do STJ é a de São Paulo. Dos 1.223 HCs e RHCs concedidos sobre tráfico privilegiado, 733 viram do Tribunal de Justiça paulista (59,9%). O segundo colocado nesse ranking é o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com um décimo do número (73).
A renitência é tamanha que gerou mais um embate público com o STJ. Isso ocorreu no HC 913.210, em que o desembargador convocado Jesuíno Rissato advertiu o TJ-SP de que precedentes qualificados e a jurisprudência do STJ estavam sendo descumpridos.
A resposta foi uma nota assinada pelo presidente da Seção Criminal do TJ Paulista, desembargador Camargo Aranha Filho, que criticou a “lógica do tudo ou nada” na formação do sistema de precedentes brasileiro.
O caso concreto trata de um réu que teve o redutor de pena negado porque respondia a outra ação por tráfico e devido à elevada quantidade de drogas que trazia consigo.
O STJ tem tese vinculante, no Tema 1.139, que veda a utilização de inquéritos e/ou ações penais em curso para impedir a aplicação do redutor de pena.
A corte tem posição firme no sentido de que a quantidade de drogas apreendida só serve para modular a fração de redução da pena na terceira fase da dosimetria, desde que não tenha sido considerada para aumentar a pena-base.
Ato infracional
O levantamento de Metzker mostra que a questão da quantidade de drogas, isoladamente, foi a que mais gerou concessão de ordem para reduzir a pena do réu: 672 vezes. Já os casos em que o réu tinha ação penal ou inquérito policial em andamento foram 192.
O terceiro motivo, com 54 casos, foi o fato de o réu ter praticado ato infracional análogo ao tráfico de drogas quando era adolescente. Tribunais e juízes consideram um indicativo de que ele se dedica a atividades criminosas.
Nesse ponto, a jurisprudência passou por alterações. Desde 2021, a 3ª Seção do STJ entende que o registro de atos infracionais pode afastar a aplicação do tráfico privilegiado, quando os fatos sejam graves, bem documentados e não afastados no tempo.
Um exemplo citado foi o caso de um réu primário que tinha 71 infrações enquanto menor de idade. Ministros apontam a necessidade de avaliar, caso a caso, para ver se há ou não dedicação a atividades criminosa.
A concessão de ordem em 54 casos indica que as cortes não fizeram essa análise de forma adequada.
51 HCs por dia
Os casos de tráfico privilegiado fazem parte de um universo maior e crescente do uso de Habeas Corpus, que há tempos gera preocupação no STJ.
De janeiro a 22 de julho, o tribunal concedeu a ordem 10.598 vezes — a média diária é de 51,9 concessões, o que indica um crescimento de 19,3% em relação a 2023, quando o STJ concedeu 43,5 HCs e RHCs por dia.
Mais da metade é sobre tráfico de drogas: foram 5.521, que correspondem a 52% do total. Desses, 5.451 (98,7%) foram decididos de maneira monocrática, o que indica que houve aplicação de posições pacificadas.
Já dados do tribunal mostram que, até junho, foram registrados 44.587 Habeas Corpus e 8.402 e recursos em HC. A presidente da corte, ministra Maria Thereza de Assis, mostrou preocupação com os números no encerramento do semestre forense.
Não há perspectiva de melhora imediata. A decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu balizas para diferenciar tráfico e porte de maconha, por exemplo, deve gerar uma nova onda de HCs no STJ. Ministros da casa já se preparam para aplicar a decisão._
TJ-RJ tem plataforma online de resolução de conflitos com uso de IA
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro lançou a primeira plataforma institucional de resolução online de conflitos de uma corte do país, a Plataforma + Acordo. O objetivo é aumentar a celeridade e reduzir custos e burocracia.
O público-alvo da plataforma é o advogado, que para acessar a + Acordo, basta clicar em um botão na página principal do portal do TJ-RJ, na aba do advogado ou por meio do acesso rápido.
Na plataforma, o profissional do Direito insere os dados do cliente, como documentos e procuração e, por meio da inteligência artificial, recebe ou não uma proposta de acordo. Se receber e aceitar, o acordo será distribuído automaticamente para a homologação no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania da Capital (Cejusc). O advogado opera a plataforma em nome do cliente.
“É um projeto pioneiro. O objetivo é facilitar a solução dos conflitos já conhecidos pelo Tribunal. Aquelas questões que já são pacificadas pelo Tribunal, nas quais há pouca oscilação na jurisprudência, são transferidas para a plataforma”, ressalta o desembargador Cesar Cury, presidente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec).
O desembargador destaca os pontos positivos da nova plataforma. “O projeto torna mais simples a vida do cidadão, porque ele tem a previsibilidade do que vai acontecer com a sua questão; o advogado tem um gerenciamento melhor dos seus casos e a condição de resolver imediatamente a questão. Já para os juízes, há uma redução no volume de trabalho, permitindo que eles se dediquem mais aos processos verdadeiramente complexos; e para o Tribunal, a plataforma gera também uma economia na gestão de um modo geral, na medida em que temos a solução do conflito sem o processo”.
O presidente do Nupemec explica que o projeto está dividido em quatro fases. Na primeira etapa o interessado dialoga apenas com a máquina com o conteúdo que já está disponibilizado; se não houver acordo, na segunda etapa o interessado pode pedir para conversar com alguém da empresa, de forma síncrona ou assíncrona; na terceira etapa, caso não haja convergência, um mediador pode ser chamado a participar; e ainda não havendo acordo, numa quarta etapa, o interessado recebe todo o conteúdo produzido, já preparado para entrar com uma ação judicial.
Parceria com a Light
A primeira fase do projeto tem uma parceria com a Light, concessionária de energia elétrica no Rio de Janeiro. A empresa foi escolhida com base nos dados estatísticos do TJ-RJ, que a apontam como a maior litigante privada do estado. Serão inicialmente tratados os casos pré-processuais do assunto mais recorrente relativo à empresa, o TOI (Termo de Ocorrência e Inspeção).
“A grande vantagem é a celeridade para o jurisdicionado. Em um dia ou em minutos, o caso pode ser resolvido”, afirma o juiz Francisco Emílio Carvalho Posada, da 2ª Vara de Itaguaí e do Nupemec.
A plataforma + Acordo é extensível e adaptável, o que possibilita ampliar seu uso para qualquer caso de acordo e, também, para outros tribunais brasileiros. “Uma outra fase do projeto já está sendo desenvolvida para casos processuais com outros litigantes e outras competências”, pontuou o juiz.
A iniciativa foi desenvolvida pelo Instituto Tecgraf da PUC-Rio em parceria com o Legalite e outros departamentos da universidade. A equipe envolve profissionais de diversas áreas, entre as quais Ciência da Computação, Ciência de Dados, Direito e Design. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-RJ._
Clássicos aduaneiros: Introdução ao Direito Aduaneiro, de Claude Berr
Foram lançadas luzes, em 12/7/2022, em coluna publicada aqui no Território Aduaneiro, sobre os “clássicos aduaneiros” (Por que ler os clássicos? — versão Direito Aduaneiro) [1], lá entendidos, com inspiração em Italo Calvino, como os livros aduaneiros que você teria vergonha de dizer que não leu.
Em 09/04/2024, também nesta coluna, deu-se origem à série de resenhas e traduções de clássicos aduaneiros, com texto sobre o “Direito da Integração” [2], já alertando que o objetivo das resenhas (e traduções) não era “ser um clássico” ou poupar o leitor de efetivamente acessar as obras clássicas, “simplificando-as” [3], mas apenas servir aperitivo que convidasse à prazerosa degustação do original, para poder saborear o texto autêntico, esse sim “clássico”.
O autor e a obra clássica
A menos de uma semana das Olimpíadas de Paris, elegemos para analisar na coluna de hoje a obra Introduction au Droit Douanier, originalmente lançada em 1997 [4], por Henri Trémeau e Claude Berr, que figuram entre os pioneiros do Direito Aduaneiro na França, e são ainda autores do conhecido Le Droit Douanier, que teve a primeira edição publicada em 1975 [5], e a sétima (e mais recente) publicada em 2006 [6]. Trataremos mais especificamente da segunda edição da Introdução ao Direito Aduaneiro, que consta na autoria exclusiva de Claude Berr, publicada em 2008 [7].
Claude Joseph Berr é professor emérito da Universidade Pierre-Mendès-France – Grenoble [8], e autor de diversas obras na área aduaneira, sendo membro ocupante da cadeira 26 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro [9].
A obra, sintética e efetivamente introdutória [10], com apenas 70 páginas de texto, conta com uma Introdução, composta por três Seções (dedicadas à “Noção de Direito Aduaneiro”, a “Questões Fundamentais” e ao “Campo e Aplicação do Direito Aduaneiro”), três Títulos e “uma Conclusão Geral”. O Título I se refere à “Função do Direito Aduaneiro”, sendo desmembrado em dois Capítulos (que tratam da “Proteção de um Território Aduaneiro” e da “Eficiência da Proteção Aduaneira”); o Título II, a “Princípios Fundamentais de Direito Aduaneiro Comunitário”, sendo igualmente subdividido em dois Capítulos (sobre “Elementos característicos das mercadorias” e “Tratamento Aduaneiro da Mercadoria”); e o Título III dispõe sobre a “Aplicação Nacional do Direito Aduaneiro”, sendo constituído por dois capítulos, versando a respeito de “Relações da Administração Aduaneira com Usuários” e “Contencioso Aduaneiro”.
Apesar de nenhuma das obras aqui mencionadas possuir edição recente, o leitor atento encontrará esses clássicos ainda à venda em livrarias especializadas e na internet, além de obras que comentam a atual codificação europeia [11].
Reflexões iniciais e Introdução
O Direito Aduaneiro frequentemente carrega a reputação de ser um campo complexo e restritivo. No entanto, essa percepção é apenas um reflexo das contradições inerentes à vida comercial internacional, na qual a busca pela liberdade de comércio deve ser balanceada com a regulação necessária à proteção da sociedade e do próprio livre comércio, em bases não discriminatórias. Não são antagônicos os interesses das empresas, que desejam que as técnicas aduaneiras evoluam para se adequarem à globalização, e os dos estados, que precisam proteger os cidadãos das diversas ameaças que surgem em decorrência do comércio.
Berr explora, na obra, como o Direito Aduaneiro tem logrado encontrar um equilíbrio entre esses imperativos, e que a União Aduaneira, na Europa, demonstrou sucesso considerável na conciliação de tais interesses, ao eliminar a maior parte das barreiras comerciais entre os estados membros e estabelecer regras comuns para o comércio com o resto do mundo, posicionando o bloco como ator dinâmico no comércio global.
O texto ilustra, em geral, como o direito aduaneiro evoluiu em resposta às mudanças e reviravoltas do cenário internacional, tornando-se acessível e relevante para todos que se dedicam a tal área. Assim, o texto, apesar de escrito há mais de uma década, oferece visão abrangente e atual sobre como o Direito Aduaneiro se ajusta e responde às demandas contemporâneas.
Nesse escopo, o estudo já inicia com alerta de que não serão tratados, exceto em casos excepcionais, nem aspectos da organização da aduana, nem seu funcionamento, nem os problemas que isso possa ter ocasionado no passado (como sua vinculação aos Ministérios das Finanças, da Economia, da Indústria etc.) ou atualmente (tais como suas relações com outros órgãos, como a polícia civil e militar).
Adverte-se ainda para o anacronismo da intervenção dos agentes aduaneiros, considerando que a maior parte das transações ocorre entre empresas multinacionais e que as transferências de tecnologia têm mais relevância do que o transporte físico de mercadorias. No entanto, não faria sentido estudar o Direito Aduaneiro sem considerar os agentes responsáveis por sua aplicação, porque, muitas vezes, esses agentes não apenas aplicam as leis, mas também as inspiram e permanecem sendo seus intérpretes privilegiados.
O papel dos agentes aduaneiros teve que evoluir à medida que novas funções lhes foram atribuídas, as quais tendem menos a regular o fluxo de mercadorias e mais a garantir que estas (e aqueles que as transportam) não representem riscos para a saúde pública, ao meio ambiente, aos consumidores, e ao patrimônio nacional, entre outros. E, nesse aspecto, a União Aduaneira Europeia é rica em lições: a supressão das barreiras aduaneiras entre os estados membros da União, longe de tornar obsoleta a utilidade do Direito Aduaneiro, só reforçou sua importância. E isso ocorre não apenas porque há uma Tarifa Externa Comum, mas também porque mesmo nos intercâmbios intracomunitários, a liberdade de circulação de mercadorias demanda mais do que simplesmente a abolição de regulamentações existentes, pois não basta “desregular” para liberalizar.
Atualmente, o Direito Aduaneiro busca um equilíbrio complexo entre facilitação do comércio e reforço da segurança pública, promovendo mudanças substanciais nas tradicionais normas da função aduaneira em vários domínios, sendo o processo profundamente influenciado pela crescente adoção de tecnologias de informação, com o objetivo de estabelecer uma “aduana sem papel”.
Os alertas iniciais são seguidos por uma Introdução, que trata, preliminarmente, das definições possíveis de Direito Aduaneiro (e da dificuldade de delimitação teórica satisfatória de tais definições), e das questões fundamentais nesse campo de estudo, como a unidade ou dualidade do direito aduaneiro e sua excepcionalidade quanto ao direito comum. Fechando a parte introdutória, Berr apresenta o que entende como o campo de aplicação do Direito Aduaneiro, mais bem delimitado que as definições e questões fundamentais, precisamente a operações envolvendo exclusivamente intercâmbio internacional de mercadorias.
A função do Direito Aduaneiro
Berr salienta que a função primordial do Direito Aduaneiro (Capítulo 1) é, efetivamente, garantir a proteção do território aduaneiro de maneira eficaz. E essa proteção engloba objetivos econômicos e não econômicos. Sobre a proteção do território aduaneiro, são trazidos dois aspectos importantes: o primeiro (Seção 1) focado nos objetivos econômicos, discutindo, primeiramente, a transição de uma proteção passiva para uma proteção ativa, e, em seguida, a mudança de uma proteção autônoma para uma proteção negociada; e o segundo (Seção 2) destinado a examinar os objetivos não econômicos, destacando o papel preponderante das autoridades nacionais e o controle das autoridades comunitárias.
No que se refere à eficácia da proteção aduaneira (Capítulo 2), Berr explora (Seção 1) o enfraquecimento dos instrumentos tarifários (grosso modo, tributários), incluindo a queda dos direitos de aduana (imposto de importação) e a flexibilização da legislação tarifária. Quanto a esse tema, destaca que a tributação aduaneira representa o mais antigo e sofisticado meio de proteção contra a invasão de mercadorias estrangeiras em competição com a produção interna e que tributar a mercadoria importada, elevando seu preço, objetiva restabelecer, de forma praticamente mecânica, o equilíbrio entre os produtores nacionais e estrangeiros.
Contudo, para que esse reequilíbrio ocorra, é fundamental que os direitos de aduana sejam estabelecidos em um nível apropriado e que as modalidades de seu cálculo, conforme previsto pela legislação tributária, estejam adaptadas a esse propósito. A observação do comércio mundial demonstra, por um lado, que os tributos aduaneiros sofreram um desgaste tão significativo que sua capacidade compensatória é questionável e, por outro lado, que as legislações tributárias (incluindo a legislação comunitária) têm seguido uma tendência de flexibilização contínua.
A Seção 2, por sua vez, analisa o triunfo dos instrumentos não tarifários, discutindo a diversidade de tais instrumentos e sua legitimidade.
Os princípios fundamentais do Direito Aduaneiro Comunitário
O Direito Aduaneiro Comunitário é fundamentado em princípios específicos (Capítulo 1), destacando os elementos característicos da mercadoria: a classificação tarifária (Seção 1), tratando da nomenclatura tarifária e das regras de classificação da mercadoria; a origem (geográfica) da mercadoria (Seção 2), discutindo os desafios da atribuição de uma origem e a complexidade das regras de origem; e o valor aduaneiro (Seção 3), detalhando sua definição e o cálculo correspondente, destacando que o primeiro método de valoração previsto no Acordo de Valoração Aduaneira se aplicaria, provavelmente, a mais de 95% dos casos, sendo os demais método excepcionais.
Sobre o tratamento aduaneiro da mercadoria (Capítulo 2), discute-se a mercadoria destinada a permanecer no território aduaneiro (Seção 1), diferenciando entre a introdução em livre prática (livre circulação no espaço comunitário em condições semelhantes a uma mercadoria de origem comunitária) e a introdução a consumo (com o pagamento de tributos devidos, no destino), tratando-se ainda da cobrança da dívida aduaneira.
É ainda analisada a mercadoria destinada a não permanecer no território aduaneiro (Seção 2), apresentando-se regras gerais relativas aos “regimes econômicos aduaneiros”, que são subdivididos em regimes com “vocação comercial” (como o entreposto aduaneiro e a admissão temporária), “regimes de vocação industrial” (o aperfeiçoamento ativo e o reembolso-drawback), “regimes de transporte” (como o trânsito aduaneiro, comunitário e internacional), e as “zonas francas”.
Aplicação nacional do Direito Aduaneiro
Em relação à aplicação nacional do Direito Aduaneiro, Berr explora as relações entre a administração aduaneira e o que denomina de “usuários” (Capítulo 1), examinando os controles aduaneiros (Seção 1), que já não se restringem aos movimentos físicos das mercadorias, e utilizam medidas a posteriori, para permitir a libração mais rápida de mercadorias sem prejuízo dos controles, inclusive no que se refere à salvaguarda do interesse do tesouro (Seção 2).
Sobre o Contencioso Aduaneiro (Capítulo 2), são analisados os aspectos gerais do Direito Penal Aduaneiro (Seção 1), incluindo a falta de harmonização comunitária e os contornos do Direito Penal Aduaneiro, buscando identificar, de forma geral, as principais infrações aduaneiras (Seção 2), destacando o contrabando (abrangendo a importação e a exportação de mercadorias no território aduaneiro com violação às disposições normativas aduaneiras, entre outras condutas, buscando subtrair as mercadorias ao controle aduaneiro) e as ausências de declaração e falsidades na declaração.
Conclusão geral
Em suma, a obra de Claude Berr oferece um panorama enriquecedor, ainda que introdutório, de uma disciplina frequentemente negligenciada e por vezes considerada ingrata pelos juristas, objetivando não necessariamente reabilitar o Direito Aduaneiro, mas destacar seus aspectos essenciais e situá-lo dentro do contexto mais amplo do Direito Econômico contemporâneo.
Apesar da crescente globalização e liberalização do comércio internacional, o Direito Aduaneiro continua a desempenhar papel crucial na segurança das transações comerciais transfronteiriças. As fontes inspiradoras que moldaram o Direito Aduaneiro, com o impacto histórico do Gatt e o papel que veio a ser assumido pela Organização Mundial do Comércio contribuíram para a transparência regulatória, e para uma visão mais dinâmica das administrações aduaneiras, com redução de obstáculos artificiais ao comércio, acompanhando as transformações radicais ocorridas desde a Segunda Guerra Mundial, como o colapso dos impérios coloniais, a ascensão de novas economias industrializadas e a revolução tecnológica.
O mais notável, nesse processo, é a capacidade de o Direito Aduaneiro se modernizar sem abrir mão dos avanços históricos que o fundamentam, dos conceitos e mecanismos básicos que têm raízes que remontam a séculos. Essa capacidade, no entanto, não isenta o Direito Aduaneiro de críticas, pois, como toda construção humana, enfrenta desafios e limitações, sendo por vezes visto como excessivamente formalista ou insuficientemente preparado para enfrentar novas ameaças, como a entrada de mercadorias falsificadas e problemas sanitários.
A experiência da União Aduaneira Europeia demonstra a relevância contínua e crescente do tema, pois a remoção das barreiras aduaneiras entre os Estados membros não diminuiu, mas ampliou o interesse por questões aduaneiras, tanto entre profissionais quanto estudiosos.
Eis a grande lição que Berr nos deixa, a partir da experiência europeia: a diminuição de fronteiras, com a adoção de territórios aduaneiros comuns, não mitiga, mas acentua a importância das Aduanas._
Município deve indenizar pais de bebê que recebeu vacina errada
A 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve uma decisão de primeiro grau que condenou o município de Jundiaí (SP) a indenizar os pais de uma bebê por erro em vacinação em posto de saúde municipal. Foi fixada uma indenização por danos morais no valor de R$ 70 mil, além de ressarcimento material de R$ 799 pelos custos de internação.
De acordo com os autos, os pais levaram a filha de cinco meses à unidade de atendimento para vacinação contra meningite, mas foi aplicado, por engano, imunizante contra Covid-19, não indicado para bebês, e em dose muito superior à recomendada até mesmo para adultos.
A criança apresentou inúmeros sintomas clínicos e, de acordo com laudo médico, a aplicação indevida acarretou lesão no miocárdio, que demandará acompanhamento cardiológico contínuo durante a infância, com risco de morte.
Para o relator do recurso, desembargador Spoladore Dominguez, foi incontroversa a falha na prestação do serviço, gerando situação que ultrapassou um mero dissabor. Ainda segundo ele, “houve situação excepcional que permite a aferição de dano moral, que é aquele que afeta, sobremaneira, direito da personalidade”.
“Os genitores se viram, de inopino, abalados psicologicamente com a integridade da saúde da menor, a qual estava sofrendo os efeitos de uma vacinação incorreta e não recomendada para a sua faixa etária, sendo submetida a exames e internação hospitalar decorrente do erro cometido pela servidora municipal, o que, por si, já caracteriza aborrecimento demasiado acima do comum, principalmente diante da situação de impotência vivenciada, com o quadro clínico da menor agravado, ante o erro vacinal, podendo decorrer sequelas não descritas sequer na literatura médica”, registrou o relator.
Completaram a turma de julgamento os desembargadores Isabel Cogan e Djalma Lofrano Filho. A decisão foi unânime. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-SP._
Empresa de fachada criada para frustrar Receita é ato lesivo à administração pública
A criação de uma empresa de fachada com o objetivo de frustrar fiscalização tributária é conduta que se amolda ao ato lesivo contra a administração pública, previsto na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013).
Com esse entendimento, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça confirmou a condenação de uma empresa pertencente ao Grupo Líder, que integra organização criminosa responsável por sonegar R$ 527,8 milhões.
A condenação e os valores foram reconhecidos pelas instâncias ordinárias em diversos processos. No caso concreto, a empresa teria sido criada exclusivamente para dificultar as atividades de investigação e fiscalização tributária da Receita Federal.
A pessoa jurídica recorreu ao STJ, apontando ofensa ao artigo 5º, inciso V, da Lei Anticorrupção. A norma diz que dificultar investigação ou fiscalização é ato lesivo à administração pública.
Precedente aplicado
Relator da matéria, o ministro Herman Benjamin destacou que o tema foi enfrentado em outro caso relacionado ao Grupo Líder, no REsp 1.803.585, julgado em 2020.
Nele, a 2ª Turma concluiu que a previsão do artigo 5º, inciso V, da Lei Anticorrupção abrange a constituição das chamadas empresas de fachada com o fim de frustrar a fiscalização tributária.
“A Lei 12.846/2013 não condiciona a apuração judicial das infrações nela descritas à prévia instauração de processo administrativo, mas apenas reitera o consagrado princípio da independência das instâncias”, explicou o relator.
Isso porque o artigo 18 da mesma lei define que, “na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial”._
Juiz autoriza mudança em contrato de empresa de apostas sem integralização do capital social
As regras e condições para obtenção de autorização para explorar a modalidade lotérica de apostas de quota fixa exigem capital integralizado de R$ 30 milhões. O requisito, no entanto, diz respeito à autorização, não ao registro de alteração do contrato social.
Esse entendimento é do juiz Evandro Carlos de Oliveira, da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo. Ele autorizou a alteração no registro do contrato social de uma empresa de apostas mesmo sem a integralização do capital social.
“É certo que a Portaria SPA/MF Nº 827, de 21 de maio 2024, para estabelecer as regras e as condições para obtenção da autorização para exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa por agentes econômicos privados em todo o território nacional exige capital integralizado de trinta milhões de reais”, destacou o julgador.
Mas ele ponderou em seguida: “Ocorre que este requisito é para obtenção da autorização da exploração da atividade, e não para o registro da alteração do contrato social. Assim, presentes os requisitos legais, defiro a tutela de urgência para determinar o registro da alteração do contrato social da empresa independente do capital social”.
Segurança e sustentabilidade
Atuou no caso o advogado Flávio Picchi, sócio do escritório Maia Yoshiyasu Advogados. Segundo ele, a decisão é importante para assegurar a segurança jurídica e a sustentabilidade de negócios no setor de apostas.
“A concessão da liminar reforça a importância de uma clara distinção e compreensão das determinações legais vigentes. A exigência de integralização para mera alteração na Junta é ilegal. Acertada a decisão do magistrado em atender à urgência do pedido, impedindo consequências comerciais à empresa.”_
Convalidação no licenciamento ambiental por vício de incompetência
A convalidação dos atos no licenciamento ambiental por vício de incompetência pode acontecer quando, após o início dos procedimentos, verifica-se que o nível federativo de competência é outro, devendo o processo administrativo ser encaminhado ao órgão originalmente competente. É o caso de um licenciamento ambiental iniciado no município ou no Estado que depois é repassado à União porque se constatou ali alguma das hipóteses de competência licenciatória federal previstas no inciso XIV do artigo 7º da Lei Complementar 140/2011
Nada impede que o órgão ambiental originalmente competente convalide o licenciamento ambiental que tramitou em outro órgão, seja essa convalidação no todo ou em parte. Para isso, no entanto, aquele deverá manifestar a concordância com os atos administrativos praticados por este, o que pode ser feito tanto de forma expressa quanto tácita.
Se a legislação foi devidamente observada, o princípio da eficiência aponta para a inexistência de razões para se exigir que o empreendedor se submeta de novo a todos os procedimentos já realizados com sucesso perante outro órgão ambiental. Afinal, cuida-se da confirmação ou ratificação do ato ou processo administrativo até então considerado nulo por vício de competência, situação que encontra abrigo expresso na Lei 9.784/1990 (Lei de Processo Administrativo da Administração Pública Federal):
Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.
São, portanto, dois requisitos para a aplicação do instituto: ausência de lesão ao interesse público e inexistência de prejuízo a terceiros. Na prática, em se cuidando do licenciamento ambiental, o que precisa ser levado em conta é se a legislação ambiental e o rito processual administrativo foram cumpridos.
A finalidade é sanear o vício meramente formal que não comprometa o mérito do ato administrativo, evitando, assim, burocracia desnecessária e promovendo maior celeridade, economia e eficiência. Não teria mesmo sentido submeter as pessoas e a própria Administração Pública à repetição de procedimentos onerosos, demorados e complexos — a não ser, é claro, que isso se demonstre indispensável ao atingimento do objetivo do licenciamento ambiental, o que só poderá ser verificado no caso concreto.
Ao possibilitar o aproveitamento de atos e até do processo administrativo como um todo, o mecanismo ajuda a promover a segurança jurídica e a estabilidade das relações sociais, podendo ser de grande serventia para o cidadão comum, as empresas e o Poder Público. Por ser essencialmente técnico, duradouro e sujeito a muitos procedimentos, etapas e exigências particulares, é possível afirmar que no licenciamento ambiental a convalidação assume uma relevância ainda maior se comparado à maioria dos demais processos administrativos.
Faz-se necessário que o órgão ambiental competente motive por que está ou não está ratificando o licenciamento ambiental, ou parte dele, uma vez que a Administração Pública tem a obrigação de motivar os seus atos. De toda sorte, poderá ocorrer a convalidação tácita caso o órgão competente assuma o processo e simplesmente dê sequência a ele, sem dizer expressamente que o convalidou.
Já a negativa da convalidação, seja integral ou parcial, deve ser sempre expressamente motivada, pois assim determina a Lei 9.784/1990, uma vez que se está restringindo um direito da parte interessada naquela processo [2]. Em outras palavras, a convalidação deve ser a regra, e a não convalidação a exceção, que será sempre motivada.
Naturalmente, a ideia de convalidar o licenciamento ambiental pressupõe que o órgão ambiental competente analise e não identifique irregularidades no processo, de forma a assegurar a qualidade do controle ambiental. Com efeito, não se pode acatar o que foi feito por outro órgão ambiental sem se verificar a legalidade e a regularidade do procedimento.
Na hipótese de evidência de irregularidade, o órgão ambiental competente não apenas não poderá convalidar o ato, mas tem a obrigação de denunciá-lo. Por essa razão, é muito improvável que a convalidação se torne uma prática rotineira nos órgãos ambientais.
Ao convalidar o licenciamento ambiental feito de maneira adequada, o órgão ambiental competente poupa recursos humanos e materiais, podendo se dedicar mais e melhor aos seus demais processos e responsabilidades. Tal possibilidade acaba contribuindo para a otimização da atuação dos órgãos ambientais, ajudando na missão fim deles de proteger o meio ambiente.
Todo o conteúdo do processo administrativo pode ser objeto da convalidação, incluindo análises jurídicas, análises técnicas, juntada de documentação e a própria licença ambiental concedida, caso aquela etapa do licenciamento ambiental tenha chegado ao final. Isso significa que é possível convalidar um ato administrativo, um conjunto de atos administrativos ou mesmo o processo administrativo inteiro, o que incluiria, evidentemente, a licença ambiental concedida.
A realização da audiência pública e a própria aprovação do Estudo e do Relatório de Impacto Ambiental poderão ser convalidados, visto que nenhum procedimento do licenciamento ambiental estaria isento disso [3]. Logo, não obstante a atividade ser considerada significativamente poluidora, tendo um impacto ambiental efetivo e/ou potencial maior, a convalidação deverá ocorrer (e, provavelmente, ocorra com muito mais razão, visto que essa modalidade de licenciamento ambiental é mais cara, mais complexa e mais longa).
Padrões e exigências
Não existe um licenciamento federal, um estadual e outro municipal, visto que a finalidade, as etapas e as regras do procedimento devem ser as mesmas. É preciso seguir, portanto, as mesmas exigências e padrões de qualidade, independentemente de qual seja o órgão responsável pela sua condução, o que reforça o papel da convalidação enquanto instrumento de promoção de desburocratização, eficiência e economicidade na chamada Administração Pública ambiental.
Isso implica dizer que não é apenas possível, como também recomendável, o aproveitamento dos atos praticados pelo órgão ambiental incompetente. A exceção, vale lembrar, seria a hipótese de identificação de um procedimento tecnicamente errado ou ilegal, ocasião em que o órgão ambiental competente deve motivar expressamente o porquê da não convalidação.
É claro que se trata de uma excepcionalidade, pois não é comum que um órgão ambiental deixe tramitar em sua estrutura o processo de licenciamento ambiental de competência de outro nível federativo. Importante não confundir a convalidação com a delegação de competência, que é quando, por comum entendimento, o órgão ambiental originalmente competente repassa a sua atribuição a outro órgão ambiental [4].
Sendo assim, a convalidação no licenciamento ambiental por vício de incompetência é um mecanismo que, no caso concreto, pode ajudar a promover a eficiência e a segurança jurídica do processo administrativo, permitindo a correção da falha sem necessariamente comprometer a continuidade das atividades nem a proteção ambiental. Com respaldo legal, a convalidação contribui para a estabilidade das decisões administrativas e a efetividade da política ambiental, demonstrando ser uma ferramenta interessante tanto para a Administração Pública quanto para os empreendedores e a sociedade em geral [5].
Art. 7º. São ações administrativas da União: (…) XIV – promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento (…).
[2] Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; III – decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; IV – dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório; V – decidam recursos administrativos; VI – decorram de reexame de ofício; VII – deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII – importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo. § 1º. A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato. § 2º. Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados. § 3º. A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.
[3] A Resolução 237/1997 do Conama dispõe sobre os procedimentos do licenciamento ambiental: Art. 10. O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas: I – Definição pelo órgão ambiental competente, com a participação do empreendedor, dos documentos, projetos e estudos ambientais, necessários ao início do processo de licenciamento correspondente à licença a ser requerida; II – Requerimento da licença ambiental pelo empreendedor, acompanhado dos documentos, projetos e estudos ambientais pertinentes, dando-se a devida publicidade; III – Análise pelo órgão ambiental competente, integrante do Sisnama , dos documentos, projetos e estudos ambientais apresentados e a realização de vistorias técnicas, quando necessárias; IV – Solicitação de esclarecimentos e complementações pelo órgão ambiental competente integrante do Sisnama, uma única vez, em decorrência da análise dos documentos, projetos e estudos ambientais apresentados, quando couber, podendo haver a reiteração da mesma solicitação caso os esclarecimentos e complementações não tenham sido satisfatórios; V – Audiência pública, quando couber, de acordo com a regulamentação pertinente; VI – Solicitação de esclarecimentos e complementações pelo órgão ambiental competente, decorrentes de audiências públicas, quando couber, podendo haver reiteração da solicitação quando os esclarecimentos e complementações não tenham sido satisfatórios; VII – Emissão de parecer técnico conclusivo e, quando couber, parecer jurídico; VIII – Deferimento ou indeferimento do pedido de licença, dando-se a devida publicidade. § 1º. No procedimento de licenciamento ambiental deverá constar, obrigatoriamente, a certidão da Prefeitura Municipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo e, quando for o caso, a autorização para supressão de vegetação e a outorga para o uso da água, emitidas pelos órgãos competentes. § 2º. No caso de empreendimentos e atividades sujeitos ao estudo de impacto ambiental — EIA, se verificada a necessidade de nova complementação em decorrência de esclarecimentos já prestados, conforme incisos IV e VI, o órgão ambiental competente, mediante decisão motivada e com a participação do empreendedor, poderá formular novo pedido de complementação._
Regulação das big techs deve coibir abuso sem inibir inovação, afirma presidente do Cade
O mercado digital deve ser regulado de forma equilibrada, para que seja possível coibir abusos sem inibir a inovação. Se assim não for feito, normas excessivamente rígidas tendem a sufocar o dinamismo necessário para o desenvolvimento de novas tecnologias.
Essa interpretação é de Alexandre Cordeiro Macedo, presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em uma consulta pública aberta pelo Ministério da Fazenda, o órgão manifestou interesse em ser o regulador das big techs em matéria econômica.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Cordeiro afirmou que o Cade manifestou interesse porque tem expertise e “capacidade de lidar com as complexidades do mercado digital”.
“O Cade possui um histórico robusto na análise de questões concorrenciais no âmbito da economia digital, demonstrando capacidade de implementar remédios eficazes para restaurar a competitividade em mercados complexos. Essa expertise permite ao Cade não apenas identificar e corrigir distorções de mercado, mas também antecipar problemas e agir de maneira preventiva.”
Segundo ele, uma boa regulação deve coibir práticas anticompetitivas que criem concentração de mercado, sem com isso impedir a adoção das novas tecnologias.
“O desafio reside em encontrar um equilíbrio delicado entre a regulação que protege contra abusos e a flexibilidade que permite a inovação. A criação de uma regulamentação adaptativa e responsiva, que evolua juntamente com o mercado digital, é uma solução para esse dilema.”
De acordo com o presidente do Cade, o Projeto de Lei 2.786/2022, que discute o tema, é insuficiente porque não fornece uma noção explícita de “concorrência justa” nos mercados digitais, diferentemente de iniciativas internacionais. Ainda assim, ele defende uma abordagem brasileira para a regulação.
“Essa avaliação ainda precisa ser cuidadosamente aprofundada no caso brasileiro, considerando as especificidades do nosso arcabouço jurídico-institucional. Não podemos cair na armadilha da mera importação de princípios estrangeiros, sem adaptá-los às nossas demandas.”
O projeto, de autoria do deputado João Maia (PL-RN), atribui à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) o poder de regular a operação das plataformas digitais, mas resguarda a atuação do Cade no controle de atos de concentração econômica envolvendo as plataformas.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — O Cade manifestou interesse em ser o regulador das plataformas digitais no Brasil. Como se daria a atuação do órgão nessa função?
Alexandre Cordeiro — A manifestação de interesse se deu devido à expertise do Cade e à capacidade de lidar com as complexidades do mercado digital. A proposta é baseada em diversas justificativas e planos detalhados para a implementação dessa regulação. A experiência acumulada ao longo dos anos confere ao Cade uma compreensão profunda das dinâmicas e dos desafios específicos dos mercados digitais, o que é essencial para uma regulação eficaz. Essa expertise permite ao Cade não apenas identificar e corrigir distorções de mercado, mas também antecipar problemas e agir de maneira preventiva.
Considerando a realidade brasileira, a avaliação inicial do Cade é que seria adequado pensar em uma estrutura regulatória flexível, com ajuste individual das disposições e monitoramento contínuo. Isso permitiria uma abordagem regulatória mais eficaz e informada, capaz de se adaptar rapidamente às mudanças no mercado digital e às novas práticas empresariais que possam surgir. Essa flexibilidade regulatória é essencial para lidar com a rápida evolução tecnológica e as mudanças nas dinâmicas de mercado, permitindo que o regulador responda de maneira ágil e eficiente a novos desafios.
Para implementar a regulação, o Cade considera a criação de uma unidade especializada dentro de sua estrutura organizacional dedicada exclusivamente aos mercados digitais. Essa unidade seguiria o modelo de outras iniciativas internacionais, como a Digital Markets Unit (DMU) no Reino Unido, que opera dentro da autoridade antitruste e é especializada em questões relacionadas a mercados digitais. A criação de uma unidade especializada permitiria ao Cade concentrar recursos e expertise nas peculiaridades dos mercados digitais, aumentando a eficácia da regulação. Essa unidade seria responsável por monitorar continuamente o mercado, identificar práticas anticompetitivas e propor intervenções regulatórias quando necessário.
Outra parte crucial do plano do Cade é fortalecer a colaboração com órgãos internacionais de competência similar. Essa cooperação facilitaria a troca de conhecimentos e práticas, contribuindo para uma abordagem mais alinhada às tendências globais na regulação da concorrência. Participar de fóruns e redes internacionais permite ao Cade aprender com as experiências de outros países, adaptar soluções bem-sucedidas e evitar armadilhas comuns.
ConJur — Na consulta pública aberta pelo Ministério da Fazenda, o Cade defendeu uma regulação preventiva e assimétrica, que leve em conta o tamanho de cada plataforma. Como se daria essa forma de regulação e por que essa seria a melhor opção?
Alexandre Cordeiro — O Cade defende um modelo de regulação ex-ante assimétrico para plataformas digitais, baseado em uma abordagem flexível e adaptável. Nossa proposta é motivada pelo reconhecimento de que plataformas digitais possuem características econômicas e concorrenciais distintas, que podem gerar riscos à competição e à inovação, exigindo um escrutínio regulatório mais intenso para aquelas com maior poder econômico e função de gatekeepers.
A regulação assimétrica é preferida porque a imposição indiscriminada de obrigações regulatórias a todas as plataformas, independentemente de seu porte e posição de mercado, poderia gerar custos de compliance desproporcionais e desincentivar a inovação e a entrada de novos competidores. Portanto, a regulação deve se concentrar nas plataformas que apresentam maior capacidade de adotar condutas anticompetitivas.
Para a implementação dessa regulação, o Cade propõe uma análise de impacto regulatório detalhada, para avaliar os efeitos potenciais das opções regulatórias. É fundamental abordar com cautela o paradoxo que permeia os mercados digitais. Por um lado, esses mercados são caracterizados por sua natureza disruptiva e rápida evolução, o que significa que um excesso de regulação pode resultar em barreiras que inibem a inovação. A inovação é o motor do crescimento econômico e da competitividade, e regulamentações excessivamente rígidas podem sufocar o dinamismo necessário para o desenvolvimento de novas tecnologias e modelos de negócios.
Por outro lado, a ausência de regulamentação adequada pode levar a um cenário onde o enforcement é insuficiente para conter abusos de posição dominante no futuro. Empresas digitais têm o potencial de crescer rapidamente e atingir um tamanho que lhes permite exercer um poder de mercado significativo, o que pode resultar em práticas anticompetitivas e prejudiciais ao consumidor. Sem uma estrutura regulatória eficaz, torna-se difícil intervir de maneira preventiva e corretiva para garantir um mercado justo e competitivo.
Portanto, o desafio reside em encontrar um equilíbrio delicado entre a regulação que protege contra abusos e a flexibilidade que permite a inovação. A criação de uma regulamentação adaptativa e responsiva, que evolua juntamente com o mercado digital, é uma solução para esse dilema.
ConJur — Quais são as outras medidas necessárias para superar esse desafio?
Alexandre Cordeiro — Não apenas para as redes sociais, mas para mercados digitais em geral, a regulação ex-ante pode ser importante devido às suas características (dos mercados), como externalidades de rede e tendências de concentração de mercado. Tais práticas precisam ser prevenidas proativamente para evitar danos significativos ao mercado. A abordagem ex-ante visa precisamente a essa antecipação, essencial em um ambiente onde um único ator pode rapidamente dominar o mercado devido aos chamados efeitos de rede.
Como exemplo, facilitar a portabilidade de dados e a interoperabilidade entre plataformas é uma medida importante para aumentar a contestabilidade do mercado. Isso significa permitir que os usuários transfiram seus dados facilmente de uma rede social para outra, reduzindo os custos de troca e promovendo uma concorrência mais saudável. A interoperabilidade também diminui as barreiras à entrada de novos competidores.
Outro ponto é a regulação das práticas de autopreferência. Plataformas que favorecem seus próprios produtos ou serviços em detrimento de concorrentes podem abusar de seu poder de mercado, e a regulação dessas práticas ajuda a evitar tais abusos.
É necessário ressignificar condutas abusivas convencionais, como práticas de exclusividade e vinculação de produtos, para o contexto das redes sociais. Isso pode incluir a pré-instalação de aplicativos de determinada empresa em sistemas operacionais móveis ou a imposição de serviços conjuntos de redes sociais e anúncios de e-commerce. Tais práticas podem excluir rivais e levantar preocupações sobre abusos de exploração, como a imposição de termos de uso abusivos e a coleta excessiva de dados.
Esses aprimoramentos visam não apenas a garantir uma concorrência justa e promover a inovação, mas também a proteger os consumidores no ambiente digital dinâmico das redes sociais.
ConJur — Há modelos estrangeiros que poderiam ser adotados por nosso país ou o Cade defende uma solução totalmente brasileira?
Alexandre Cordeiro — Atualmente, existem diversas propostas de regulação ex-ante de mercados digitais que estão sendo discutidas ou já estão sendo implementadas ao redor do mundo. A legislação mais conhecida é o Digital Markets Act (DMA), da União Europeia, que foi aprovado em 2022 e cujas regras começaram a ser aplicadas em março deste ano. Mas existem outros modelos de regulação, como o artigo 19 da Lei Alemã de Defesa da Concorrência e o Digital Markets, Competition and Consumers Bill (DMCC Bill), aprovado em maio deste ano no Reino Unido.
O Cade entende que devem ser avaliadas as vantagens comparativas de cada uma dessas experiências internacionais. Enquanto o DMA apresenta uma extensa lista de obrigações para os gatekeepers, os modelos alemão e inglês apostam em estratégias de regulação mais responsivas.
De toda forma, essas experiências internacionais apontam para a importância de adotar uma abordagem de intervenção mais abrangente do que a aplicação das leis antitruste tradicionais, complementando a legislação com regulamentos específicos para o setor digital. É crucial encontrar um equilíbrio entre a promoção da inovação e a garantia de concorrência, evitando que a regulação prejudique a inovação.
O Brasil pode se inspirar em modelos estrangeiros, especialmente o europeu, mas o Cade defende uma abordagem brasileira, que leve em conta as particularidades do nosso mercado.
ConJur — Alguns especialistas defendem a expansão do escopo de atuação de órgãos como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e Anatel, para que atuem no conteúdo concorrencial das big techs. O que o senhor acha dessa ideia?
Alexandre Cordeiro — Até o momento, na maioria das jurisdições analisadas, as autoridades de defesa da concorrência têm sido as principais responsáveis pela implementação das novas regras ex-ante para plataformas digitais, refletindo uma tendência de fortalecimento dessas autoridades já existentes, ao invés da criação de novos órgãos reguladores.
A expansão do escopo de atuação de órgãos como ANPD e Anatel para incluir questões concorrenciais relacionadas às big techs não parece ser a melhor opção em termos de política pública. Na minha visão, o Cade deve continuar sendo o principal responsável pela regulação concorrencial dessas empresas.
Primeiramente, o Cade possui uma expertise específica e uma competência legal, definida pela Lei 12.529/201, para tratar do bem-estar do consumidor e da livre concorrência no mercado. Essa especialização torna o Cade apto a enfrentar as complexidades do mercado digital, onde as big techs operam. A consistência nas decisões é fundamental para garantir um ambiente competitivo, e a dispersão de responsabilidades entre múltiplos órgãos pode resultar em uma aplicação menos eficaz das leis antitruste.
Expandir o papel da ANPD e da Anatel poderia gerar sobreposições regulatórias e conflitos de competência, criando um cenário onde a clareza e a eficiência regulatória são comprometidas. Cada agência tem um foco e especialização próprios — proteção de dados e telecomunicações, respectivamente —, e desviar dessas áreas pode reduzir a qualidade de suas atuações principais. Alargar seus escopos para incluir a regulação concorrencial poderia diluir seus recursos e comprometer a eficácia de suas funções originais.
Entendo que a cooperação entre diferentes órgãos é essencial, mas a regulação da concorrência das big techs deve permanecer com o Cade. Isso garante uma abordagem especializada, coesa e eficaz, que assegura tanto a inovação quanto a competição no mercado digital. Portanto, fortalecer o Cade nessa função é a melhor estratégia para lidar com os desafios concorrenciais impostos pelas big techs, promovendo um ambiente econômico mais justo e dinâmico.
ConJur — O senhor afirmou que o Cade tem expertise no tema. Pode citar exemplos da atuação do órgão no mercado digital?
Alexandre Cordeiro — O Cade tem demonstrado uma expertise significativa no tema das plataformas digitais, desenvolvendo uma série de iniciativas, estudos e casos práticos focados na concorrência em mercados digitais.
Quanto aos casos, o número envolvendo plataformas digitais aumentou significativamente nos últimos anos. Entre 1995 e abril de 2023, foram notificados 233 atos de concentração em mercados digitais, sendo aproximadamente 26% destes relacionados ao varejo online, e 24% concernentes ao segmento de publicidade online.
Um exemplo notável é a análise do Cade na aquisição da Activision Blizzard pela Microsoft, que envolveu mercados digitais. Esse caso destacou diferenças significativas na abordagem de várias jurisdições, incluindo os Estados Unidos, a União Europeia e o Brasil, refletindo a capacidade do Cade de lidar com fusões complexas em ecossistemas digitais, considerando as especificidades de cada contexto regulatório e as implicações concorrenciais dessa transação. Também podemos citar como outros casos relevantes já tratados pelo Cade os julgamentos envolvendo a TotalPass e a Gympass e iFood, Rappi e Uber Eats, nos quais o Cade determinou, por exemplo, o encerramento de acordos de exclusividade.
Em parceria com a autoridade de concorrência da Rússia, o Cade também coordenou um grupo de trabalho dos Brics sobre concorrência no mercado digital, culminando na publicação de dois relatórios “BRICS in the Digital Economy: Competition Policy in Practice”, que discutem as práticas e os desafios enfrentados pelas autoridades antitruste dos países-membros em relação à economia digital. O mais recente desses relatórios foi publicado em abril deste ano, e tem sido bastante elogiado pela comunidade internacional.
ConJur — Com a legislação existente no Brasil, já é possível falar em regulação?
Alexandre Cordeiro — Sim, é possível. Entretanto, o modelo atual não basta. Algumas mudanças são necessárias para nos atualizarmos e ganharmos eficiência. Com o modelo atual, estamos restritos a uma abordagem ex-post, falhando em capturar as dinâmicas específicas e inovadoras das plataformas digitais, exigindo uma abordagem regulatória mais refinada e adaptada à realidade do ambiente digital. É importante pensar em uma proposta de regulação ex-ante, visto que as leis antitruste tradicionais não são suficientes para endereçar os riscos de danos aos consumidores e à sociedade em geral decorrentes de problemas concorrenciais verificados nos ecossistemas digitais.
Essa avaliação ainda precisa ser cuidadosamente aprofundada no caso brasileiro, considerando as especificidades do nosso arcabouço jurídico-institucional. Não podemos cair na armadilha da mera importação de princípios estrangeiros, sem adaptá-los às nossas demandas. Contudo, com o espírito de colaborar para o avanço dessa discussão, é importante compreender quais são os focos de insuficiência que têm sido apontados, a fim de que se possa aprofundar essa avaliação em relação ao regime da Lei 12.529/2011._
AGU defende no STF suspensão de lei que permitiu privatização da Sabesp
A Advocacia-Geral da União enviou, nesta quinta-feira (18/07), ao Supremo Tribunal Federal manifestação favorável à concessão de medida cautelar para suspender os efeitos da Lei estadual nº 17.853/2023, que autoriza a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).
A manifestação ocorreu no âmbito da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 1182, proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Além de questionar a constitucionalidade da lei, a agremiação também pede a suspensão da eficácia de atos administrativos do Conselho de Administração da companhia e do Conselho Diretor do Programa Estadual de Desestatização (CDPED).
De acordo com o PT, a lei estadual e os atos destinados à privatização da Sabesp violam os princípios da Administração Pública previstos no artigo 37 da Constituição Federal: legalidade, moralidade, impessoalidade, isonomia, publicidade e eficiência.
Na peça enviada ao STF, a AGU destaca que os fatos narrados e os documentos constantes nos autos da ADPF 1182 mostram que esses princípios não foram observados no processo de privatização da empresa, que é uma sociedade constituída por ações de mercado que integra a administração indireta do estado de São Paulo.
A AGU ainda ressalta a existência de conflito de interesses no processo de venda, o que viola os princípios da impessoalidade e da moralidade. O conflito envolve, segundo destaca a peça, a executiva Karla Bertocco Trindade. De acordo com as informações constantes nos autos, Trindade participou de diversas reuniões como presidente do Conselho de Administração da Sabesp. Também envolveu-se diretamente em processos decisórios relevantes para a concretização do programa de privatização da companhia.
O conflito de interesses ocorre, segundo destaca a AGU, pelo fato de que a executiva também ocupava, até recentemente, cargo no Conselho de Administração da Equatorial Energia, única empresa que, no curso do processo de privatização, permaneceu com interesse em ser acionista da Sabesp na condição de investidor de referência.
Para a AGU, o exercício simultâneo dos dois cargos pela executiva, um em companhia estatal e outro em empresa privada participante do processo de venda na condição de competidora, constitui ameaça aos princípios da impessoalidade e da moralidade e forte indício de grave conflito de interesses.
“Conquanto a duplicidade de funções, a princípio, não constitua ilícito, é necessário conciliar essas atividades, de modo a resguardar o interesse público. Isso porque, eventual aceitação da mesma integrante em funções públicas e privadas, simultaneamente ou logo após, pode gerar conflitos entre os interesses público e privado”, assinala a manifestação.
Em reforço ao argumento apresentado ao STF, a AGU menciona a vedação prevista na Lei nº 12.813/2013, que trata de situações de conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo federal. A Advocacia-Geral assinala que tal conflito pode permanecer mesmo após o exercício de cargo público, razão pela qual há a previsão de período de quarentena para ex-ocupantes desses cargos.
Como lembrou a AGU, o próprio STF validou vedações legais similares previstas na Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 7331. Nesse caso específico, a corte firmou o entendimento de que “os vetos fixados pela legislação não ferem a Constituição e nem violam direitos fundamentais, mas, sim, criam filtros para garantir a moralidade da administração pública e evitar conflitos de interesses”.
Valores subdimensionados
A AGU também destaca na manifestação que existem evidências de que os valores das ações da Sabesp foram subdimensionados, como assinalado na ação proposta pelo PT. A constatação consta do Relatório de Avaliação Econômico-Financeira (Valuation), que aponta como valor de mercado R$ 103,90 por ação, 55% maior que o valor aceito pelo estado de São Paulo.
Diz a peça: “A petição inicial apresenta uma tabela com valores indicados pela Oferta Equatorial (R$ 67,00), pela Cotação B3 (R$ 74,97), pelo referido Relatório Valuation (R$ 85,58/R$ 103,90), a qual demonstra que o valor ofertado pela Equatorial por ação, ainda que acima do mínimo definido pela Sabesp, é significativamente inferior ao valor de mercado.”
E acrescenta: “o encaminhamento da venda à Equatorial por apenas R$ 67,00 evidencia a debilidade dos estudos de avaliação do valor da ação, em clara venda que lesará o erário bandeirante.”
Por fim, a AGU argumenta que o prazo de apenas três dias para inscrição dos competidores interessados na condição de investidor de referência da Sabesp foi extremamente exíguo, o que também pode ter comprometido a lisura do processo, sobretudo em razão da complexidade e do volume de documentos a serem apresentados.
O cronograma de privatização fixado pelo estado de São Paulo prevê que, na próxima segunda-feira (22/7), será efetivada a liquidação da oferta pública de distribuição secundária de ações ordinárias de emissão da Sabesp. Para a AGU, a eventual demora na concessão da medida cautelar pedida pelo PT na ADPF poderá causar “prejuízos irreparáveis para os cofres estaduais, em especial diante da evidência de defasagem no preço das ações” da companhia. Com informações da assessoria de imprensa do Advocacia Geral da União._
Lembrar sempre que a prisão cautelar é exceção. Liberdade é a regra
Se a liberdade é pressuposta, toda e qualquer hipótese de restrição/limitação deve estar descrita previamente em lei, com a atribuição de competência e do procedimento necessário à observância do devido processo legal.
O tema é interminável e foi retomado por Fabiano Samartin Fernandes em face da atividade profissional exercida com competência, já que provido de conhecimentos, habilidades, experiências e atitude para com o devido processo legal [formal e material]. Nos últimos tempos temos interagido na Comunidade e Academia Criminal Player, motivo pelo qual fiquei muito contente com a leitura do livro “A liberdade é a regra: o tempo na prisão institucionalizada para um inocente preso” [Emais, 2024 aqui].
A reflexão parte do pressuposto do exercício de deveres e direitos: liberdade. Embora a definição, titularidade e âmbito de incidência de entidades abstratas seja objeto de controvérsias infinitas, no ambiente democrático, ainda que com alguma variação, a liberdade é a regra.
Em face da constante e dinâmica relação entre segurança e garantias, o abandono do estado inicial de inocência somente ocorre com o trânsito em julgado, preservando a condição de arguido não condenado e, portanto, com o direito de ser considerado e tratado como presumivelmente inocente. Entretanto, diante da prevalência da mentalidade inquisitória, tão bem delineada por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Leonardo de Paula, dentre outros, persevera a decretação de prisões cautelares desprovidas de análise acurada do preenchimento concreto dos pressupostos, requisitos e condições.
Aliás, se o sistema prisional continua sob o estado de coisas inconstitucional, conforme declarado pelo STF na ADPF 347, então, com maior vigor, deve-se exigir a robusta motivação e fundamentação quanto à decretação e manutenção de prisões sem condenação definitiva.
Ponto de vista garantista
Nesse contexto é que o livro de Fabiano promove a releitura desde o ponto de vista democrático e garantista, indicando a existência de externalidades negativas ao conjunto familiar, às relações de emprego, além da estigmatização em face da prisão cautelar, principalmente em cidades menores e quando o caso é coberto pela mídia.
Por isso, o ato de prisão cautelar gera efeitos processuais diretos e, ao mesmo tempo, efeitos indiretos/colaterais, muitas vezes desconsiderados como variáveis da decisão. De qualquer sorte, a luta pela construção de um processo democrático é renovada com o trabalho de Fabiano que se inscreve na incessante luta pelo processo penal justo, no qual a prisão cautelar é a exceção, desde que preenchidos os pressupostos, requisitos e condições expressamente previstos em lei, conforme já escrevemos [com Aury Lopes Jr.] em diversas colunas antecedentes.
A obra cobre boa parte dos temas necessários à verificação das conclusões que o autor formula ao final. O mais desafiador é que os paradoxos são reiterados pela doutrina há muito tempo, contando com certa leniência do Poder Judiciário quanto às constantes violações aos direitos individuais relatados no decorrer do livro.
Com suporte nas críticas apresentadas, reitera-se a discussão sobre os cuidados e salvaguardas ao tratamento da prisão cautelar, necessariamente de não-condenados.
O problema maior é o que diante da dispersão de critérios, parâmetros e valores atribuídos aos pressupostos, requisitos e condições da prisão cautelar, torna-se complexa a atividade de verificação quanto à presença concreta de suporte fático, em geral, substituídas por frases de efeito, jargões os mais diversos, julgamentos morais e entulho doutrinário/jurisprudencial que, ao fim e ao cabo, conferem aparente motivação/fundamentação.
Entretanto, surge cada vez mais a necessidade de estabelecermos parâmetros verificáveis, sob pena de se manter o paraíso da exceção do caso concreto. Eis o desafio._